11 – OSSOS DO OFÍCIO

   Naquele tempo, estabelecimento comercial que se prezava tinha que ter um telefone e, muitas vezes este era o único da redondeza. Este servia como ponto de apoio para a vizinhança que, antes do advento e proliferação dos orelhões, usavam nem que fosse só um “instantezinho” para uma ligaçãozinha. As chamadas tinham que ser locais, pois interurbanos só com autorização e intermediação da Embratel. A cortesia daquela farmácia tinha um custo para ela, e o acréscimo no valor da conta telefônica, naquela época, aparecia nas chamadas excedentes. Ligar para celular, que também poderia encarecer a conta, não se fazia, nem celular existia.

   Às vezes a farmácia servia como posto de recebimento de chamada. A figura do garoto do recado esteve presente naquele famigerado estabelecimento. Aquele menor aprendiz que vivia atrás do balcão espanando a prateleira e fazendo entregas nas redondezas, tinha uma missão maior: levar o recado, e trazer a resposta.

Ficando a farmácia próxima do único pronto-socorro da cidade, era para lá que todos os que necessitavam avisar alguém, via telefonema, sobre algo ocorrido e que por isso foram parar no pronto-socorro se dirigiam. Notícias tranquilizadoras, alta hospitalar e internações eram bem comuns, assim como as situações opostas. Avisavam alguém para avisar outro alguém, que fulano tinha vindo parar no pronto-socorro, mas estava bem. Aproveitava para pedir que trouxessem chinelo e escova dental, também avisavam que não estava nada bem ou às vezes já não estava mais conosco. Outro jeito de avisar era pela “Hora do Fazendeiro” um programa de uma rádio que ficava bem próxima dali.

Ter telefone conferia ao assinante a posse da disputadíssima, anualmente editada, lista telefônica. Ela era como uma bíblia aos desesperados. Ela possuía sequencia alfanumérica dos assinantes, bem como a relação das ruas do município e seus respectivos moradores assinantes, com mapa e tudo. Em um momento de desespero, naquela época, ninguém recorria a uma agenda eletrônica ou perguntava no “Whats” o número do telefone de alguém, a salvação era a lista. Se o assinante não quisesse figurar nela, pagava por isso, e caro, mas quem não queria fazer parte dela. Quem não estava na lista não existia, dizia o “slogam” da editora. O desesperado chegava e a pedia emprestado. Com ela em mãos ia pesquisando os possíveis nomes e seus números, isso quando não ia direto ao endereço. Sempre encontrava nem que fosse um vizinho do procurado, e se dissesse que o caso era de vida ou morte, em cinco minutos a chamada era respondida.

Um dia a chamada era para o próprio balconista.

-É da farmácia? Queria falar com o Isluiz, o farmacêutico, dá para chamar? A seguir o fone era encaminhado ao interlocutor.

-Alô.

-Isluiz? É a vó, Deus abençoa.

-Pois não Dona Guiomar, a sua benção. Isluiz tinha o costume de tratar, respeitosamente, sua avó assim. O que a senhora manda?

-Isluiz ligaram ai do pronto-socorro perguntando se eu conheço um tal de Ramiro.

Tinham achado a anotação do telefone da avó na carteira dele. Era o seu Babão um conhecido de longa data, quase parente, antigo morador de Rio Brilhante. Ele tinha sofrido um acidente com a bicicleta. Foi atropelado por um ônibus, disse a avó, adiantando o assunto. A avó disse para o Isluz ir à casa dele avisar a família sobre o acidente, pois por telefone seria impossível, eles não tinham, naquela época poucos ainda possuíam um aparelho instalado em casa. O único telefone próximo seria o do laticínio no qual poderia até ligar e solicitar o favor, mas vai saber como seria dada a notícia para a dona Davina, a esposa do seu Babão. A avó também solicitou que seria necessário ir de carro, para aproveitar e trazer alguém para acompanhar o atendimento. Lembrou logo deste neto pois ele tinha um Corcel 73, e sempre socorria a avó levando-a para algum lugar sempre que precisava.

Isluiz, mais que depressa se despediu dela e disse que podia deixar com ele, que ele daria um jeito, depois ligaria dando mais, ou más, notícias.

EIe analisou bem o caso e concluiu que se fosse só para acompanhar o acidentado ele mesmo se prontificaria a fazer isso, além do mais os enfermeiros do Pronto-Socorro eram seus clientes e por alguma necessidade o avisariam com certeza. Restava saber como estava o paciente. Se fosse o caso de leves escoriações, aguardaria o atendimento, receberia todas as orientações da equipe médica e, com o paciente em alta, o levaria para casa, que ficava, como já disse, lá perto do laticínio, quase uma viagem.

Lá chegando se desculparia com dona Davina por não ter vindo antes, para não lhe causar preocupações, que poderia ter ligado para o laticínio, mas ficou ressabiado sobre como a notícia seria dada, sabe como é, atropelamento e sempre um atropelamento e por ônibus então, as pessoas vão logo pensando desgraça. Entregaria o acidentado junto com a receita e a nota, aviada no seu estabelecimento, e se ela perguntasse pelo valor, não faria questão, afinal de contas a família era conhecida da avó desde os tempos de Rio Brilhante, onde a avó nasceu. Primeiro foi saber do acidentado, depois decidiria.

Outro detalhe que o Isluz cuidou de verificar foi encontrar a bicicleta, afinal de contas, segundo relatos da avó, ele tinha sido atropelado de bicicleta por um ônibus. O ônibus estava por conta da concessionária, mas a bicicleta era do seu Babão, uma Monark Barra Circular, diga-se de passagem, prata, guidão cromado e alto, pneus balão com faixa branca, selim com mola dupla, garupa almofadada, corrente engraxada, pedal com olho de gato, para-lamas envolventes e descanso cromado, era assim que seu Babão a descrevia a qualquer um quando lhe perguntava se ele tinha uma bicicleta, um verdadeiro xodó.

Antes de ter acesso ao interior do PS, se apresentou como conhecido do acidentado que se encontrava em pleno atendimento hospitalar. Isluz foi atendido pelo Seu Guarda, o do trânsito, que estava de serviço na recepção. Este levou-o até onde se encontrava a bicicleta, ou o que restou dela, isso mesmo a Barra Forte ficou fraca perante o ônibus, restou a cor prateada do quadro e os aros retorcidos. Se a bicicleta ficou daquele jeito, o seu Babão então nem se fala. A entrega do que restou da Monark foi providencial, pois o acidentado não estaria diferente, assim o adiantou o Seu Guarda.

De volta à recepção só lhe informaram o estado do acidentado, pois onde ele estava só entrava a equipe médica. Os atendentes ficaram consternados por terem que dar aquelas informações ao farmacêutico, pois o conheciam e queriam compartilhar aquele sofrimento. O caso era grave. Perguntaram-lhe sobre outros familiares. Isluz disse que estavam chegando, moravam longe, e só tinham sido avisados a pouco. Mentira dele. Viera primeiro tomar pé da situação para se preparar para levar a notícia até lá perto do laticínio.

Saindo dali, passou na farmácia e avisou os funcionários que iria se ausentar por um bom tempo já que teria que seguir rumo ao laticínio. O espanto dos funcionários foi geral: Laticínio? Pois todos sabiam que o lugar era longe e para se chegar até lá tinha mais uma: Só indo pela Bandeirantes! Avenida movimentada, artéria de acesso à zona sul da cidade, que naquela época abrigava bolsões populacionais em expansão, com grande quantidade de carros transitando e acidentes a todo momento. Só de falar em Bandeirantes já se sentia maus presságios.

O corcel 73 estava à postos, teria a árdua tarefa de conduzir o detentor da má notícia e trazer algum familiar mais próximo. No caminho Isluiz foi matutando a forma como daria a notícia. Já se vira em outra situação semelhante, mas cada caso era um caso. Fora à casa do seu Babão uma vez, à noite, junto com a família, isso quando ele era bem menor, agora com ele crescido o lugar também já devia ter se transformado, a única certeza era que o laticínio ainda estava por lá. Ele era um dos pontos de referência que a cidade possuía. Se alguém quisesse se orientar próximo daquelas bandas era só localizar o laticínio. Se fosse preciso iria perguntando nas redondezas até encontrar a casa do seu Ramiro. Antes da partida, porém, se orientou pelo mapa da lista telefônica. Seguiria pela Bandeirantes até a Europa, dai chegaria à rua do laticínio. A casa do seu Babão ficava em uma rua paralela, acima do laticínio e do córrego, à direta da ponte de madeira.

Por suas orientações achou fácil a casa que procurava. Lembrou-se das duas toras que formavam o portão e das duas touceiras de capim cidreira bem junto a cada um deles, além da fachada da casa de madeira muito parecida com o que viu na noite em que esteve por lá. Nem foi preciso se anunciar. Dona Davina logo viu que tinha gente e de longe reconheceu o neto da dona Guimar, o Isluz, como ela o chamou.

Isluiz foi se chegando cumprimentando-a, reclamando do calor, pedindo uma água, que ele sabia era de poço, perguntando se ela estava sozinha, se o filho padeiro que ela disse que tinha acabado de sair iria demorar e… só não perguntou do seu Babão, pois este ele sabia onde estava, ou onde havia o deixado.

Dona Davina em contrapartida, depois de responder ao desinteressado Isluiz, perguntou do resto da família, da dona Guiomar que está sumida, que não visita casa de pobre, que quando quisesse aparecer não precisava avisar era só vir, que ela estaria sempre por lá e que só o Ramiro às vezes vai na cidade, mas eram raras as vezes. Se estavam todos bem, continuou perguntando, se tinha alguma novidade e, enquanto aguardava as respostas, foi preparar um cafezinho, para ganhar tempo porque dali a pouco o Ramiro chegaria.

Isluz foi tomando coragem para tocar no assunto, afinal de contas ter cortado aquele trecho e chegado a tão longe só seria justificado se fizesse o pretendido. Primeiro dispensou o café, disse que a demora seria pouca, estaria com pressa, tinha deixado a farmácia nas mãos de empregados. Sabe como é se o dono não está lá eles não resolvem nada, disse em pé já pronto para tomar a porta da frente. Espere mais um pouquinho, pediu a conhecida, e se o Ramiro chegasse iri ficar muito triste por ter se desencontrado dele.

Antes que ela perguntasse o motivo da visita inesperada e de insinuar qual era o interesse ou qual notícia ruim trazia, Isluiz foi logo dizendo que, como ela sabia, a farmácia ficava bem próximo do pronto-socorro e que por isso ele havia sido chamado lá porque alguém da família estava recebendo atendimento, e que por isso viera ao seu encontro ou seja, algum morador daqui foi parar no PS. Quem seria? Perguntou dona Davina incrédula. Isluiz então fuzilou esperando a pior reação da interlocutora: Seu Babão! Mas por que? Disse ela ainda incrédula. Tinha sofrido um acidente, os médicos precisavam falar com alguém da família, e que ele já havia se prontificado, mas disseram que teria que ser alguém mais próximo, então ele estava ali para buscar alguém. Porque não ligaram? Se ligassem no laticínio eles viriam avisar, eles conhecem todo mundo por aqui. Uma vizinha da mesma rua também se presta a esta gentileza. A se o Isluiz tivesse o endereço certinho, então ele consultaria uma lista telefônica e não seria necessário ter se deslocado até aqui, enfrentado aquele trânsito da Bandeirantes, correndo o risco de também sofrer um acidente. O laticínio inclusive tem um carro da assistente social que vive transportando gente para o hospital. Dona Guiomar devia saber disso.

Então vamos! Disse dona Davina. Pelo estado do acidentado não sabia o Isluiz se ela estaria preparada para sozinha, tomar ciência do fato. Ela, apesar da aparência, já era uma senhora que teria idade para ser avó, pois era contemporânea da sua. Ele até aquele momento dissera que o acidentado estava no hospital, mas não em que estado. Levaria um “pareio” de roupa, a escova, chinelo e uma toalha, será que precisa mais coisa? O que eles disseram? Que era o suficiente, por hora, disse o Isluz. Não chega ninguém em casa por estas horas? quis saber o farmacêutico. Quem sabe alguém poderia vir conosco? O Dito, seu filho, só viria depois das cinco, ele é padeiro e foi preparar os pães da tarde, era o que tinha acabado de sair quando chegou. A filha está viajando, e o mais velho só vem aos domingos. Se fossemos à padaria quem sabe ele não arruma alguém para dar conta dos pães? A padaria não era tão longe, inclusive tinha um providencial aparelho telefônico, que não se sabia o número, se soubéssemos pelo menos o nome da dita cuja ela estaria figurando na lista telefônica, antes disso devíamos saber que o Dito era padeiro. Esse aqui é neto da dona Guiomar, trabalha perto do pronto-socorro, veio avisar que o Ramiro foi atropelado e os médicos precisam falar com alguém da família, eu vou mas ele acha que se vier mais alguém é melhor, eu acho que nem precisa. Não dá, à tarde é só um padeiro, tenho que dar conta de tudo, disse o Dito. Isluiz quis enfiar o pé na jaca e dizer logo da gravidade do ocorrido e de tabela também adiantar à dona Davina o que ela encontraria lá no hospital. Seria bom mais alguém vir conosco, eu até fico de companhia com sua mãe, mas numa hora dessas… e que horas? Tudo bem que um acidente recebe esse nome porque é um acidente, algo inesperado, mas o que eu tenho para contar e ainda não contei já não é mais acidente para mim. Seu pai não está nada bem! Isluiz, apesar de nunca ter frequentado uma escola que lhe ensinasse a linguagem dos sinais, procurou se posicionar fora do ângulo de visão de dona Davina e gesticulou com a mão fechada, logo acima de sua cabeça, e o polegar esticado para baixo com um só solavanco. Bastou. Fulano vai colocar o pão no forno, disse Dito, ao dono da padaria, acho que não volto tão cedo.

Dona Davina nem quis compreender a súbita mudança de atitude do filho ao resolver lhe fazer companhia no hospital, foi a melhor decisão, sua mãe precisaria dele, os pães teriam outro assador, o padeiro um outro destino.

No trajeto de volta Isluz se esforçou para manter um diálogo monossilábico. Sim! Não! Isluiz repetiu a mesma história curta varias vezes, até chegarem ao hospital. E a bicicleta? Esqueceram a bicicleta no local do acidente? Com quem ficou a Monark do meu pai? Perguntava impaciente o Dito, que às vezes era contido por dona Davina. Além destas e mais algumas o farmacêutico achou melhor não responder. Se tinha sido seu Babão que tinha dado o telefone da farmácia? Pergunta que ele respondeu: não, quem tinha ligado foi sua avó Guiomar. Acharam uma anotação na carteira do acidentado, que dona Davina confirmou, pois ela estava junto quando ele a fez. Como tinha sido o primeiro número que ligaram e como tinham localizado alguém, nem se preocuparam em ligar para outros. Se folheasse a agenda, que era uma daquelas de bolso mas das grossas, encontrariam o telefone do Laticínio junto com o nome do contato que levaria o recado se fosse necessário, o da padaria e entre parênteses “Dito” e o da vizinha. Se o Isluiz tinha conversado com ele? Lhe disse que no momento em que estivera no PS o acidentado estava sendo atendido pelo médico ou fazendo algum exame, não sabia ao certo e por isso não foi possível. Segurou o que pode naquele bombardeio de questionamento, mas aguentou firme. Em outras situações semelhantes teve esta postura.

Assim que chegaram ao hospital encontraram as pessoas adequadas, que tomariam os cuidados necessários para não causarem estrago maior no emocional dos familiares do acidentado. Ali sim eles estariam seguros pois teriam, inclusive, suporte emocional para lidar com este infortúnio. Foi a óbito! Disse o atendente ao consultar a prancheta com a lista dos acidentados que deram entrada naquele dia. Como assim foi a óbito? Perplexo teria dito o Dito. Nos avisaram que ocorreu um acidente e que o atendimento estava sendo aqui e que estavam precisando de roupas, chinelo e escova dental.

Isluiz bem que queria ter o poder de consolar esta perda, mas preferiu o silêncio. Ouviu os agradecimentos pela disponibilidade em se deslocar até o laticínio, mas de nada adiantou.

Agora ao retornar ao estabelecimento, ligaria primeiro para sua avó e constrangido lhe daria a má noticia. Economizou palavras, pois ela já estava ao par dos fatos. Que bom homem foi ele, que dó da dona Davina, disse ela se auto consolando dizendo que a vida era assim mesmo. Que devemos continuar a nossa caminhada até a hora que Deus quisesse. Isluz quis saber da avó como tinha tomado conhecimento? Já tinha ligado na farmácia e um dos funcionários a disse.

O farmacêutico achava que a noticia ainda demoraria para tomar aquela proporção. Tinham ligado de uma padaria lá de perto do laticínio, disse um dos funcionários, que sabiam que ali trabalhava um neto da dona Guiomar que tinha ido buscar a mãe do Dito e perguntaram se já tinham chegado e se já tinham mais notícias do acidentado. Como alguém lá do pronto socorro viera à sua procura para informar sobre o falecimento, ele fez o comentário. Disse que sua avó também tinha ligado. Não demorou muito e aparece o filho mais velho na farmácia, procurando o neto da dona Guiomar.

O rapaz que entrega o leite de saquinho, aquele pasteurizado, lá do laticínio, ao fazer a entrega na padaria, ficou sabendo do ocorrido, assim como a clientela toda do estabelecimento e de outros mercadinhos do trecho percorrido pelo Mercedinho 608. Seu Ramiro foi atropelado pelo ônibus e sabe como? Só deve de ter sido por um desses que passam lotados com passageiro saindo pelas janelas, tampando a visão do motorista que coitado devia de estar dobrando serviço, isso sem falar na falta de freio dessas gerigonças que as empresas colocam para rodar por ai. Pouca vergonha desse nosso prefeito.

O que mais o farmacêutico poderia fazer, além de disponibilizar o Corceu 73 para a família, pois numa hora dessas é que aparecem os apertos. Estaria com a avó no dia do velório até depois do enterro, além de participar da missa de sétimo dia em sua companhia.

O telefone evoluiu, e a tendência é diminuir estas distâncias. O laticínio continua no mesmo lugar, agora com um vizinho a menos, mas novos vieram. O Corcel virou Belina, também sempre à disposição. O farmacêutico mais disponível em se tratando de comunicar imprevistos, oficio pesaroso, mas necessário e que a prática tem lhe proporcionado melhor traquejo, afinal alguém terá a incumbência da revelação, são os chamados “ossos” do ofício.

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