19 – FORA DE GOZAÇÃO

    Atender ao balcão de forma automática, como ler e entender uma prescrição médica, buscar o prescrito na prateleira em suas quantidades recomendadas, seria uma vida muito fácil para quem se diz ser um farmacêutico. A dificuldade aparece quando a sintomatologia foge do campo biológico e passa para o psíquico.

   -Minha mulher não tem orgasmo! Disse o cliente junto ao balcão para o farmacêutico que o atendia, dispensando com um simples envelope com quatro comprimidos de Anador.

   O assunto estava fora do contexto, porque o cliente chegou solicitando o analgésico e sem mais nem menos se abriu com o atendente. Decididamente Anador foi o prelúdio para a falta de orgasmo da esposa.

   Ele já estivera em outras oportunidades no estabelecimento. Comprara, além das eventuais receitas médicas, uma caixinha de Band-Aid e, quando em época de frio, um batom de manteiga de cacau. Era um cliente morador das redondezas que sempre transitada, em suas idas e vindas, de casa em direção ao centro e vice-versa. Passando pelo estabelecimento, saldava um ou outro que estivesse atento ao seu passar.

   Jamais o farmacêutico pode desconfiar que houvesse segundas intensões naqueles atos, como a busca de maior intimidade para uma eventual confidência, ainda mais em se tratando de um assunto tão íntimo. Se todos os que procurassem atendimento estivessem com este interesse, a fila seria grande, como aquelas que dão volta em quarteirões.

   Saber que a mulher do cliente não gozava envolveria o farmacêutico em uma situação que, um simples dispensador de medicamentos, não estava habilitado. Como já dizia sua velha avó “se não for para resolver, não se meta” e neste caso, se meter seria muito mais que o sentido literal. Poderia o balconista dispensar o assunto e dizer que isso não seria de sua alçada, afinal de contas, para orientações que não fossem posológicas de medicamentos o estabelecimento procurado deveria ser outro. Quis transparecer solidário. Reconheceu naquela ousadia um ato de desespero.

   O cliente formava com sua esposa, a que não gozava, um casal sem filhos e em recente união. Estavam a pouco tempo na cidade. Viera do interior de São Paulo, para assumir um cargo público na recém criada administração estadual. Só trouxe a esposa porque com ela contraiu núpcias, por exigência da família. Propôs que viria só, para proceder a organização das instalações e assim que tudo estivesse resolvido, retornaria para buscar a noiva assumida em compromisso de casório. O ato foi reprovado por ambas as famílias e então ele teve que entrar com a papelada no cartório.

   Estavam morando no 4215, casa 3, na vila do Seu Gutemberg, logo um pouco à frente. O estabelecimento ficava no 3668. Trabalhava no CPA, Centro Político Administrativo, e embarcava na ida e desembarcava na volta no ponto de ônibus da próxima esquina, para quem estivesse indo ao centro, daí ter que passar pela frente do estabelecimento todos os dias e cumprimentar a quem estivesse atento.

   Os familiares ficaram todos no interior paulista. As visitas à residência eram poucas. Achava que os vizinhos também estivessem na mesma situação. A esposa quase nem saía. Nas vezes em que isso ocorria seria devido a extrema necessidade. No domingo iam à missa no Dom Bosco. Aos sábados à feira central e no restante da semana enfurna-se em casa, onde aproveitava o tempo disponível para prosseguir os estudos visando o vestibular para enfermagem na Universidade Federal e assistir aos VHS´s locados na Hélios Vídeos.

   Estas eram as informações que o balconista obteve aos poucos, nas diversas vezes em que o cliente desesperado procurava atendimento e ensaiava colocar o assunto em pauta. Outros detalhes ele ainda não sabia, pois, os contatos eram breves e, para uma conversa mais prolongada, deveria ter como local não o balcão onde ele estava trabalhando.

   -Nem finge? Teria pensado em dizer, mas seria um tanto quanto rude e agido de forma desrespeitosa para com o cliente. Então o balconista fingiu um semblante sério e estatelado.

   O assunto teria um final precoce se o cliente tivesse ouvido o que o balconista teve vontade de dizer. Bastava que ao chegar em casa ele fizesse as recomendações prescritas pelo farmacêutico: Finja! Ou seja, a esposa teria que fazer o que as melhores prostitutas sabem fazer, fingir. Afinal de contas nenhum trabalho traz satisfação, ou se trouxer não trará nenhuma compensação monetária e vice-versa. Então fingir uma satisfação seria a melhor saída se esta fosse a preocupação do cliente, a de que sua esposa deveria gozar.

   “Esses dias ela me confessou”, continuou o cliente. “Quando começamos a manter relações, ela até se conformava com está submissão. Ficava sem gozar na expectativa de uma próxima oportunidade, mas a monotonia foi se acentuando e a situação ficando indesejada tanto para mim como para ela.”

   -Isso tem remédio? Suplicou quase aos prantos por uma resposta confortadora.

   -Tem! É chá de garoupa! A mulherada goza aos montes, goza só de olhar. É tiro e queda!

   O ensaio de diálogo proposto pelo farmacêutico ficava só no paralelo. Ele nunca seria descortês com seus clientes, ainda mais com um desesperado. A recomendação seria eficaz, porque nota de cem Reais faz qualquer um(a) ter um real orgasmo.

   O problema de ela não ter orgasmo era um. O de ela não ter orgasmo e querer ter sem fingimento, o elevava ao quadrado. O problema está sempre na satisfação do usuário.

   O cliente se desculpara com o balconista achando que estaria incomodando muito, tratando de um assunto tão reservado, mas confiou nele a resposta que procurava. Como era novo na cidade ainda não estreitara laços de amizades. No trabalho o que tinha, em termos de amizade, eram companheiros bem mais entrosados. Estavam disponíveis a ouvir um desabafo, mas dispostos a barganhar informações para transformá-las em fofocas. Um assunto como aquele certamente cairia em cheio nas pretensões maldosas dos outros funcionários da repartição. Repartição pública!

   Nesta altura da conversa o farmacêutico ainda não fazia ideia de quem seria a infeliz esposa que não conseguia gozar. Coitada, tão nova! Talvez ele a conhecesse, mas não como sendo a esposa do servidor público. Ela já estivera por lá comprando não sei o que, disse o cliente se referindo à esposa. Mesmo sem saber de quem se tratava e apesar da pouca experiência no tocante, o farmacêutico se mostrou solidário. Até aquele dia nenhuma das mulheres havia reclamado com ele a falta de um orgasmo. Bem sabia ele que muitas fingem só para agradar, ainda mais que o rótulo de frigida não era bem aceito no universo feminino.

   Perguntou se a mesma não teria algum problema de saúde, se tinha um ciclo regular, se tomava algum remédio controlado, se tinha como consultar um ginecologista e se ela teria alguma amiga para com quem poder se abrir, sabe como é, assunto de mulher quem mais entendem são elas mesmas.

  O cliente disse que em relação à saúde ela não apresentava nenhuma reclamação. Quanto aos assuntos de mulher ela às vezes tocava no assunto com as tias, que moravam a centenas de quilômetros dali e que de vez em quando acompanhavam a sogra em suas visitas, mas o que esperar de um parentesco que obrigava o casamento para não perder o pretendente? O ginecologista ele teria que agendar no convênio. Preferia por razões outras o agendamento com uma ginecologista, assim sendo talvez ela ficasse mais à vontade para tocar no assunto orgasmo, ou da falta dele.

   Se, aparentemente, com ela estava tudo bem então o problema poderia estar com ele, mas ele gozava, de perfeito estado de saúde. Ele gozava, ela só não gozava. E só, ela gozava? Pensou o farmacêutico querendo responder às perguntas do cliente com outras ou seria só com ele que ela não gozava.

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