12 – NEOCID

O ramo do comércio farmacêutico já foi um empreendimento fechado, voltado apenas para assuntos relacionados à saúde da população, consumidora. Os ditos “carros chefes”, clássicos campeões de venda, eram: Biotônico, Vick Vaporub, Leite de Magnésia, Licor de Cacau e o melhor remédio para a memória, Emulsão Scoot, pois quem o tomou jamais esqueceu. Outros tempos vieram e a dispensação de medicamentos parece que se tornou uma prioridade menor. É possível se encontrar no mesmo local, sorvetes e antigripais, salgadinhos e antidepressivos, refrigerantes e anticolesteróis, laxantes e antidiarreicos, chocolates e moderadores de apetite, entre outras dobradinhas. Farmácia “das antigas” era só medicamento ou coisa para saúde.

Um produto digno de reportagem era um mortal veneno chamado Neocid. Mortal desde que negligenciado seu perigo. A embalagem não trazia caveira impressa avisando, mas recomendava “conservar longe do alcance das crianças e animais domésticos. Evitar contato com os olhos e não reutilizar a embalagem vazia”, termos que para bons entendedores bastava. Se usado para a devida finalidade nada de intoxicação à vista. Também servia para suicídios, diga-se de passagem, mas a maior finalidade do seu uso era promover saúde.

Neocid era vendido em pó, acondicionado em uma lata própria para aplicação, bastava furá-la, no local indicado, com prego e apertá-la. Ao apertá-la o pó com o mortal veneno era pulverizado para atuar na devida indicação. A lata possuía um alto poder de resiliência quando se apertava a tampa e fundo simultaneamente, fazendo a típica sinfonia do “tec, tec, tec…” e então estava administrada a dose.

Neocid ainda é marca comercial que está presente nas prateleiras do comércio em geral, em opções variadas, tem até em spray. Naquela época era possível encontrar latas com líquido para reposição na famosa, bomba de “Flit”. Nestas outras apresentações, com certeza, não era encontrada em farmácias, só o Neocid em pó.

Sua utilização medicinal em humanos, apesar de ser um poderoso veneno, era como inseticida matador de piolho, inseto que parasita humanos. Hoje as opções para combatê-los são variadas, discretas, perfumadas e menos tóxicas, nas formas de xampus, cremes, loções e até comprimidos em dose única por via oral. Outras formas de se combater a praga, consistia em usar o famoso pente fino, depois de embeber os cabelos com vinagre. Se todas as opções amenas de combate a praga não surtissem efeito, o Neocid passava a régua. O mais traumático era a aparência enfarinhada que ficava o local da aplicação, nada que um lenço de cabelo, ou algo apropriado, pudesse manter a discrição, sem falar na reclusão domiciliar. Raspar o cabelo também fazia parte das terapias, talvez a mais radical. Era comum o apelido de “piolho” em meninos com cortes de cabelo em máquina zero, além de careca.

Neocid também mata pulga, mas para animais domésticos os pontos de venda eram as lojas agropecuárias. Ainda não existiam os “Pet Shop”. Hoje apesar da separação, Neocid não está presente em suas prateleiras, com certeza.

Piolho é um inseto que põe os pés na cabeça. Se alimenta de sague humano. Vive, exclusivamente nos cabelos e couro cabeludo, em média por 30 dias, fora daí morre dentro de 48 horas. Outra forma conhecida desta praga são as lêndeas, os ovos da piolha (piolho fêmea). Uma infestação deste inseto provoca a pediculose, muito comum em crianças e mais ainda em meninas, mas nada impede que adultos e meninos sejam infestados. É bom salientar que piolho não pula, não voa, não se pega por falta de higiene e não infecta cachorros e nem gatos. Tem que ter contato pessoal ou com objetos tais como roupas, toalhas, chapéus, fones, pentes, roupas de cama e etc. Ter piolho não é sinal de falta de higiene, mas lavar os cabelos, de vez em quando, diminui os riscos. O principal sintoma é a coceira que ocorre por reação à saliva do piolho. O Tifo é uma doença transmitida ao homem pela picada de piolhos, com sintomatologia bem diversa e incômoda.

Outra manifestação desta praga é a pediculose pubiana que infesta a região do saco escrotal e adjacências nos homens, da perseguida nas mulheres, além das axilas, barba, cílios e sobrancelhas. É conhecida popularmente como “chato”, uma doença contagiosa causada pelo inseto parasita, de nome cientifico, Phthirus púbis. O outro piolho, o de cabeça, é o Pediculus humanus capitis. O chato é uma DST, mas, neste caso, o uso de preservativo de nada adianta. O principal sintoma é uma intensa coceira na região afetada.

A venda de Neocid pode ter sido preterida nos balcões das farmácias, mas rendeu muitas histórias. Dividendos nem tanto, pois tudo que é barato está fadado ao esquecimento e o eficiente matador de piolhos não fugiu à regra. Ele estava sempre presente na lista de compras dométicas.

-“Tem que cuidar da criançada lá em casa”, diria o precavido consumidor.

Apesar de perder a hegemonia no tratamento à pediculose, o Neocid continuava “saindo bastante” na farmácia.

Naquela ocasião, a cliente chegou ao estabelecimento tentando ter a presença discreta, mas os atendentes estavam sempre atentos à presença feminina, tanto mais em se tratando de predicativos inerentes como era o caso. Jovem, bem ultrajada, de boa feição e de gestos meigos. A discrição foi quase despercebida, para tanto, ficou observando, desinteressadamente, o mostruário de perfumaria, até que o movimento foi se escasseando restando momentaneamente dois balconistas e ela no recinto, e como, ao que pareceu, o momento ficou propício para o propósito. Ela se dirigiu ao balcão de atendimento buscando o farmacêutico de semblante mais sério e fuzilou:

-Tem Neocid? Perguntou melindrada cliente, já preparada com uma munição de justificativas, para se acaso o balconista lhe fizesse alguma pergunta.

-Tem! Aqui está! O farmacêutico pensou, ingenuamente, tratar-se de mais um caso de pediculose que outra mãe desesperada trataria radicalmente. Infestação de piolho em adultos, é raro, mas acontece, por isso nem lhe passou pela cabeça ser ela a infestada.

A presteza e seriedade no atendimento deixou a cliente mais à vontade.

-Como é que se usa?

-Tá vendo esta marquinha aqui? Apontou para o pontinho vermelho na lata amarela. É só furar com um preguinho e aplicar, seguiu dizendo. Se quiser dar uma disfarçada, pode cobrir com um lenço. Depois deixe agir por um bom tempo e lave a cabeça com bastante água corrente.

A cliente resignada pegou a lata com todo o cuidado, pois sabia muito bem onde estava colocando as mãos. Aproximou-a para ler as minúsculas letras impressas no verso da lata, com as instruções de uso, composição, precauções e indicações. Ela estaria comprando em atendimento a uma encomenda, que ela diria ser para um(a) amigo(a) ou parente e estava se certificando do produto. Se fosse para seu consumo refugaria até o último momento e negaria sempre, previu o atendente.

-O senhor conhece chato? Perguntou a cliente na maior das interrogações possíveis, segura da discrição do balconista. Também teria que se certificar do conhecimento do prestativo, pois o assunto só estava no começo e o seu desenrolar dependeria daquele posicionamento.

-Sim! Mas não por que tive, posso lhe garantir, teria pensado um pouco alto, mas não dito. É como o próprio nome esta dizendo: chato! Bem chato mesmo! Agora sim, o farmacêutico teria dito à solícita cliente.

-Eu tô com uma coceirinha que esta me incomodando. Além de ser incômoda está me deixando atordoada. Tem horas que me dá um ataque de coceira que tenho que me cuidar para não ferir, além de me ocorrer nas horas mais impróprias. Teria dito também que por causa disso quase nem saia de casa. Ela se empolgou nas lamúrias e nem notou que estava confidenciando sua intimidade a um desconhecido, mas que no momento daquele desespero seria o indicado disponível para, se não resolver o problema, disposto a ouvi-la.

Em casa o assunto estava vedado, ninguém mais, além de uma amiga sabia da situação, inclusive fora ela quem recomendara o Neocid.

Ter chato era a mais imunda das doenças de rua. A rapaziada zombava quando um dos integrantes da turma reclamava da coceira. A fama logo se espalhava e as moçoilas recatadas evitavam qualquer aproximação. O troféu pelo despudor seria erguido com uma das mãos a outra estaria coçando as partes. Mulher com chato era atestado de falta de asseio e higiene. Os rapazes nem titubeavam, ao menor indício de coceira persistente, tosavam com barbeador as madeixas pubianas, mas as moças por força de influências religiosas nem se atreveriam a uma desbastada superficial, quanto mais aparecer com as partes barbeadas, inadmissível. Seria pega a dar explicações quando se reclusasse ao trocar de roupa. Além de chato ela não seria mais virgem ou seria uma promiscua.

A cliente carregava todos estes preconceitos quando aportou no balcão, por isso pediu discrição. Coisa que se não encontrasse no balconista estaria com a reputação jogada na lama.

-Uma amiga me disse que Neocid é bom, funciona?

-Muito bom!

-Me falaram também que se raspar também acaba, é verdade?

-Verdade! Inclusive conheço um depilador que atende com hora marcada, é sigiloso, confidente e discreto. Tem horário disponível logo após o expediente da farmácia, que inclusive vai fechar mais cedo hoje, olha que coincidência? Só a verdade foi dita, o resto ele divagou depressa.

Em uma época em que os padrões dos corpos femininos foram ditados por Claudia Ohana, Vera Fischer e Baby Consuelo, que foram capas da Revista Playboy, tosar as madeixas onde o sol não batia era como entrar na contramão das tendências da moda. Naquela época quando muito as mulheres raspavam as pernas e axilas com barbeador, o termo depilação ainda era novidade restrito a grandes centros e acessível aos poderes aquisitivos mais abastados. Raspar a perseguida era coisa de mulheres independentes.

-O senhor não quer dar uma olhadinha?

-Se a senhora achar necessário? Mas é bom. O farmacêutico se antecipou a qualquer outra resposta da padecida indefesa, atacada pela infestação de atrevidos chatos e estúpidos. É bom para sanar alguma dúvida, sabe como é, pode ser, pode não ser, mas isso depende de dar uma olhadinha, minuciosa complementando a ação do verbo.

-Como faço? Perguntou ela, girando pescoço no entorno buscando um lugar mais reservado, longe de olhares maliciosos.

-Na salinha de aplicações. Respondeu apontando para um cubículo retirado da parte frontal do estabelecimento, onde por falta de exclusividade também funcionava como depósito. Seria o local privado mais indicado para que a cliente se despisse deixando à mostra o local da coceira onde o farmacêutico pudesse certificar-se da existência ou não de uma infestação dos chatos Phthirus púbis.

O farmacêutico, em tenra idade, apesar do ofício de tratar da saúde, e isso podia significar situações adversas nas quais entrar na intimidade dos pacientes seria intrínseco, teria que tratar com a maior naturalidade tal situação. Pelos pubianos eram uma raridade de se ver, não contabilizando as freguesas que usavam o glúteo, e só deixavam à mostra o glúteo, para ministrar os injetáveis. Elas sempre preferiam seu atendimento, pois, como diziam, ele tinha mão boa.

A cliente em atendimento, apesar de reclamar de uma infestação menos nobre, não se comparava às clientes que lhe mostravam o glúteo, mas se caso fosse necessária uma injeção intramuscular, ele preferiria ministrar em seu glúteo. Desta feita a medicação seria no lado B do glúteo, local inacessível e impensável para se ministrar medicação. Em outras oportunidades o(a) ciente teria comprado Neocid e iria aplicar bem longe da vista de curiosos.

Nunca ele imaginaria alguém com aquele naipe fosse atacada pela ultrajante e indigna infestação de piolhos pubianos.

-Fique à vontade, disse-lhe o farmacêutico, oferecendo-lhe a porta aberta do cubículo. Ela envergonhada e desajeitada disse que quando estivesse pronta lhe avisaria.

O farmacêutico desejou que o mundo parasse no momento daquele atendimento, mas como não foi possível, determinou que todos os medicamentos fossem reajustados em quinhentos por cento, caso alguém viesse a perguntar o preço de algum e que Anador e Novalgina seriam grátis se retirados no autoatendimento! Disse ao outro balconista que estaria ocupado e que só em caso de incêndio o avisasse, pelo menos foi isso que o outro balconista decifrou pelo sinal que recebeu do companheiro.

-Da uma olhadinha aqui! Disse a paciente dentro do cubículo ao farmacêutico que aguardava impaciente junto a portinhola.

-O que o senhor acha? É chato? Perguntava a assustada cliente mostrando-lhe uma parte, bem pequena, dos pelos pubianos, onde logo abaixo se via a pele irritada pela violência da coçada impaciente. Ela estava atenta a todos os movimentos e feições do examinador.

O farmacêutico olhou desapontado. Deu aquela coçada característica na nuca, uma repuxada no nariz e uma distendida na sobrancelha antes de emitir o diagnóstico.

A paciente bem que poderia colaborar mais com a ciência farmacêutica oferecendo dados mais abrangentes, ou seja, expondo a áreas em maior extensão. A restrita amostra seria suficiente para um diagnóstico, mas para um diagnóstico preciso era preciso melhor análise.

-É só ai que coça?

-É.

Chato que é chato da coceira no “capô do fusca”. A região, minúscula, mostrada para exame, descia a virilha e se fixava na lateral da perseguida. Pelo menos por ali nenhum sinal de chatos. Diante do exibido o farmacêutico logo reconheceu que não se tratava do esperado. Então o que seria?

-A senhora teve contato com alguém que desconfia ou poderia desconfiar de que tivesse chatos?

-Não! Neste ponto ela foi enfática e pelo tom da voz convenceria até a mãe.

O farmacêutico dispensou a paciente da incômoda posição de segurar com as mão os peças de roupas abertas. Pelo exame deu para saber que ela falava a verdade. Se teve algum contato íntimo foi com alguém sem chato, mas o atendente quis futricar a vida alheia, descobrir algum deslize.

-Certeza?

-Não moço! Disse confiante de si, balançando a cabeça com uma negativa, insinuando ao atendente se estava desconfiando de suas palavras.

O problema agora era do farmacêutico. Se fosse chato seria chato e assunto encerrado. Ela teria que levar o Neocid e resolver o problema. Se precisasse de aplicador poderia contar com préstimos do balconista, mas não era o caso.

Como dizer a ela que aquelas placas avermelhadas e de intensa coceira não era chato e sim uma dermatofitose inguinal (virilhas).

A coisa parecia mais comum do que parecia pois tinha como principais causas o uso de roupas apertadas e úmidas pelo suor intenso e má higiene pessoal. O fungo causador é o mesmo da frieira (pé de atleta) e em muitos casos o paciente tem concomitante nos pés e na virilha.

Poderia muito bem o farmacêutico encerrar a conversa e perguntar se ela tinha frieira, mas em que situação constrangedora ela ficaria. Se ela não estivesse nem aí e dissesse que sim ela passaria a régua. Recomendaria alguns cuidados com a higiene pessoal, que secasse bem as partes íntimas com uma toalha exclusiva para a área e diferente da de outras partes do corpo. E que tivesse mais atenção com o dedo depois de dar aquela satisfatória e agradável coçada na frieira.

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