Bom Ano Novo
Ele andava cismado com as perdas irreversíveis de parte dos fiéis de sua paróquia. Considerando que esta preocupação independia de sua vontade. Contra a vontade do altíssimo não há remédio mesmo. O fato é que a arrecadação diminuiria.
Naquela manhã, estava ele aproveitando um curto intervalo de tempo para um merecido descanso. Até a celebração, das dez, qualquer que fosse o tempo, seria o necessário. Recarregaria as energias para um novo dia, e quiçá, um novo ano.
O celular tocou em hora inapropriada, se é que podemos escolher alguma, para o ofício do sacerdócio. Ele é de um tempo em que chamadas telefônicas fora de hora eram do emissário de uma desgraça. Não tinha como desconsiderar tal conceito. Por acaso: Já soube de alguém que recebeu a ligação da Caixa Econômica avisando da contemplação do bilhete na Mega-Sena, da virada, depois da meia-noite? Se soube, com certeza foi trote! Mas alguém avisando que o velório está acontecendo no parque das Palmeiras, com certeza, além de avisar que o defunto era Fulano de Tal, seu conhecido e que nem doente estava.
Em épocas antigas a ligação ocorria em telefones fixos com suas características campainhas solitárias no escuro da madrugada, que evoluíram na sonoridade, mas não amenizaram os acontecimentos. Canelas que situaram a localização, central da sala pela posição da mesinha de centro, do sonolento contemplado pela má notícia, direcionavam para a outra mesinha, a do telefone, acoplada a uma banqueta almofadada de macia estampa “animal paint”, quem nunca teve uma, que atire… O cômodo assento não amenizaria a porretada do que já lhe era esperado. Ciclano? Perguntaria o interlocutor, e quem poderia ser, àquela hora, em áureos tempos de moralidade, decência e pudor, se não o próprio dono da linha telefônica. Mas guardamos os fatos e continuamos…
Desta feita o que tocou foi o celular. É bom lembrar que estamos no auge do Whats-App, e quem não tem pressa ou o acontecimento não é grave, envia uma SMS, ou um áudio, de forma despretensiosa. Como o insistente perseverava, não teve outro jeito, teve que atender ali mesmo no leito, sem ter que localizar a mesinha de centro com uma canelada e nem sentir o macio da almofada “animal paint”.
Conforme o costume foi logo antecipando o expediente: Quem foi desta vez? Perguntou o sonolento servo de Deus, com a sua voz rouca do despertar.
Na Paróquia, nos últimos dias, ocorrera uma maratona de Unção dos enfermos e benção de corpos, com desfecho desfavorável, que o servo de Deus já nem mais iria se surpreender. Mas desta feita o inusitado: “Seu padre, estou aqui na porta da igreja fechada em plena santa quarta-feira de novena perpétua de Nossa Senhora”, diria a devota interlocutora da má notícia esperada. Continuou dizendo que estava aguardando a dez minutos, mas poderia aguardar mais um pouco e como não havia outros fiéis esperando, este atraso ficaria em segredo entre eles. Disse ainda que considerava muito a sua condução dos trabalhos pastorais e que ela esteve sempre com ele em suas decisões e pediu que ele nunca se esquecesse dela, inclusive no incluso caso de atraso para a celebração, “veja lá, rogai por mim junto ao pai”.
Ele ainda sonolento, resultado dos atendimentos pastorais até altas horas, se viu afrontado nesta manhã (madrugada!) de primeiro do ano pela devota desprovida de maiores informações. Ele, atravessando o diálogo, perguntou a digníssima devota se ela estava em dia com suas obrigações religiosas, se havia frequentado as missas em domingos e dias santos e aguardado atenta aos avisos do final das celebrações. Ela mais que depressa respondeu que estava em dia sim senhor seu padre, mas por motivos outros teve que rezar missa em outra paróquia nos últimos dias. Então, conforme prometido nos avisos passados no final das últimas celebrações, ele começou a rezar o seu “padre nosso”.
Para muitos fiéis o padre nosso genérico é de conhecimento de todos, o ensinado por Cristo: Pai nosso que… E alguns fiéis estranharam quando o servo disse que rezaria o seu “padre nosso”. Os químicos rezam em dia de prova “Pai Nox que estais nos sais…” e por aí vai, agora o do servo de deus só a assídua devota recebeu a jaculatória.
“A novena de hoje será junto com a missa, assim como no dia de Natal.”
“Qual horário? desculpe perguntar”
“Dez horas!”
“Dez horas?”
“Dez horas!”
“Dez horas!”
“isso, dez horas!”
“está bem, dez horas, entendi!”
“não vá se esquecer, dez horas!”
“Dez horas!”
Aproveitando a oportunidade o servo desejou, com votos de estima e cordialidade, Um Bom Ano Novo, para a devota, extensivo a seus familiares.
– Que bom Ano Novo Nada! Vai continuar tudo a mesma meeeeeeerda!
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