UM NÚMERO AO PORTADOR
Era uma vez um menino que nasceu na roça, em uma casa de dois quartos, onde moravam seus pais. A cidade apesar de ser próxima, era de difícil acesso, pois a estrada, vicinal, era toda esburacada e intransitável, principalmente em dias de chuvas. Ele se tornaria diferente das demais crianças do local porque não iria crescer igual a todos.
Quando seus pais o levaram ao doutor, ficaram sabendo que ele era portador de uma doença rara que levaria a sérias limitações físicas de locomoção, causando fraqueza nos músculos das pernas e dos braços. Ele seria um paralítico, na linguagem entendida pelos pais. Por causa disso, ele não andaria e teria que ficar em casa olhando o mundo pela janela ou então teriam que providenciar uma cadeira de rodas, uma coisa difícil de se imaginar na família. Seu pai, um pequeno agricultor, trabalhava para produzir o próprio alimento.
O menino teve um irmãozinho que nasceu normal. Por ser paralítico ele foi recebendo todos os cuidados, principalmente de sua mãe, a pessoa que ficava mais tempo com ele. As brincadeiras estavam por conta de seu irmãozinho.
Ele foi se desenvolvendo contrariando todas as expectativas. Não conseguiria andar, mas se colocado sentado, podia permanecer por algum tempo nesta posição, e assim fazer suas refeições e olhar o mundo de outro ângulo.
Os médicos que apresentaram o diagnóstico, dentro de suas limitações, descreveram um quadro nada alentador, mas uma das funções do corpo não seria afetada, as funções cerebrais. Sua mãe guardou estas palavras como um consolo.
Nesta situação o menino não poderia ir à escola. Todas as outras crianças que ele conhecia frequentavam as aulas, inclusive seu irmão. Como ele tinha muita vontade de estudar, sua mãe, que só tinha cursado a escola primária, e por isso pouco sabia desse negócio de escola, e pouco se lembrava também, passou a ensinar o filho acamado, sendo sua primeira professora. Transformou a casa em escola, o quarto em sala de aula e a cama em carteira escolar, diferente de outros alunos que tem escola, tem sala de aula e ainda transformam a carteira em cama para dormir e roncar durante as aulas.
A cadeira de rodas ficara presente em um sonho. Para sair do quarto, ele era carregado no colo, ora da mãe, ora do pai.
Com a mãe ele aprendia a ler e escrever corretamente, começou a contar e fazer contas, conheceu belas história e grandes feitos da humanidade, conheceu lugares olhando pela janela, tudo graças aos livros que ele abria. Uma vez sua mãe conseguiu comprar uma cartilha que continha quatro matérias. Ele tornou-se um devorador de livros. Tudo que aparecesse pela sua frente ele lia.
Seu irmão mais novo que teve a sorte de ser um normal ia à escola e sempre que retornava, trazia muitas novidades. Livros novos, revistas, apostilas velhas, lápis, canetas e borrachas novas, além dos cadernos com aquele inconfundível cheiro de começo de ano. Isso lhe ajudou muito. Ir à escola seria um detalhe, mas ele queria ouvir gritaria de crianças correndo, comer merenda, ouvir o sino tocar e receber notas dos professores, como em qualquer escola que se prezasse.
Ele não poderia se matricular na mesma escola do irmão, que era a única do lugar. Para frequentar as aulas ele precisaria de transporte escolar, que não existia. Se ao menos ele tivesse uma cadeira de rodas… mas mesmo se tivesse, como ela andaria por aquela estrada que era toda esburacada e intransitável em dias de chuvas? E na escola quem o colocaria sentado? Com quem ele brincaria? Será que alguém gostava de “adedonha” ou “batalha naval” como ele gostava de jogar com seu irmão?
Um dia o governo decidiu promover um programa de inclusão escolar: Todos tem direito à escola! Chegar à escola seria um outro programa, a ser implantado posteriormente. Todos da família e alguns vizinhos próximo vibraram com a notícia. Enquanto o Programa para transportar estudantes às escolas não era implantado pelo governo, seus pais deram um jeitinho, como todo bom brasileiro. Arrumaram uma carrinhola, daquelas usada para carregar materiais de construção. Forraram-na com umas almofadas verde-amarelas, ajeitaram o menino deficiente sobre elas, de forma que no trajeto ele não sofresse com os solavancos, e rumaram a caminho da escola.
A estradinha esburacada possuía limites de velocidades, inclusive com radares instalados que o impediram de chegar mais rápido à escola. Para não tomar chuva seu pai comprou um grande guarda-chuvas “made in China”, no camelódromo da cidade, que também o protegia do sol escaldante, típico do lugar onde morava.
Quando o pai dobrou a última esquina antes de chegar à escola, onde a rua era mais bem pavimentada, ele ensaiou uma arrancada e aumentou a velocidade. Como a carrinhola era seguida por uma multidão de curiosos, que ocupavam as calçadas por onde ele passava, ele ganhou de um dos espectadores uma bandeirinha do Brasil. Ele segurou aquela bandeirola, erguendo-a, fazendo-a tremular. Na rua da escola, alguém teria gritado: Airton, Airton, Aiiiiirton!
Seu primeiro dia na escola foi pura balburdia. Ele querendo ver gente nova. Gente nova querendo ver gente diferente. Gente diferente não acreditando que existiriam alunos daquele jeito e que aquelas carrinholas também serviam para transportar alunos. Os professores instigados, dispostos a encarar esta nova realidade (a da não exclusão) respiravam fundo, toda vez que o sinal tocava. Vamos à luta!
— Que bom que a escola deixou eu entrar, dizia o mais novo aluno matriculado.
No seu teste de nivelamento ele pode ser enquadrado na mesma série dos alunos de sua idade. Demonstrou o que havia aprendido nas lições de casa com a, agora, aposentada professora sua mãe. Daqui para frente, depois de ter percorrido a intransitável estrada vicinal, teria que vencer quaisquer outros obstáculos, pois a carrinhola, movida com a força que o pai empurrava, não teria problemas com a oscilação dos preços do petróleo, nem com sua escassez. Se faria presente em todas as chamadas e os professores assinalariam: que presente!
Quando ele chegava na escola seu pai o descarregava, digo, desembarcava, e o colocava em sua carteira improvisada à esquerda do quadro negro, que era verde, bem próximo da mesa da professora. Ele só sairia dali no final das aulas, ou até que seu pai ou outro motorista particular viesse lhe transportar, digo, buscar. Ele gritava baixinho a outros alunos: chuuuuupa Kombi lotada!
A carrinhola não era exclusiva, e além dele, transportaria outros instrumentos para transformações assim como outros tipos de concretos.
Ele gostava de todas as matérias, mas a que mais ele gostava era da matemática.
Quando a professora lhe dizia que iriam resolver uns problemas, ele se entusiasmava, pois convivera com muitos deles durante a vida. Uma raiz quadrada era a coisa mais natural do mundo. Ele se sentia irmão de todos os números primos. Para ele não existia mais incógnita do que sua existência e no dia em que ele quis resolver tudo por integral, a professora lhe disse que ele não conhecia limites.
— Professora, posso trocar maçãs por cocos de bocaiuvas? Perguntava à professora, pois achava bocaiuvas bem mais “contextualizado”.
— Professora, quando a senhora pergunta quanto tempo Zezinho levará para percorrer o caminho de casa para a escola, a senhora está considerando as condições da estrada, do tempo, e o tipo de veículo utilizado como incógnitas, ou esta equação é de primeiro grau, ou se for diretamente proporcional pode-se atrasar um pouquinho?
Seu irmão estava em outra série, mas sempre estudavam juntos. Vieram as primeiras provas, e as primeiras notas máximas.
Ele que não pode ser um paratleta, não pensou duas vezes quando o inscreveram em uma Olimpíada, de matemática. Diferente dos esforços físicos dos atletas olímpicos, quem fizesse uma olímpiada, de matemática, teria que usar a força intelectual.
Quando os resultados chegaram, seu nome constava na lista dos classificados da primeira fase. Na segunda fase, não foi diferente e desta vez foi merecedor de medalha de ouro. Ele queria tanto ir à cerimônia de entrega, que seria realizada em outra cidade, mas como chegar lá em uma carrinhola?
Nesse mesmo momento, apareceu a sua fada madrinha que lhe disse:
— Não reclames mais, você já percorreu aquela estrada vicinal e … então, com a minha varinha mágica, transformarei esta carrinhola numa cadeira de rodas motorizada, para que você vá receber a medalha.
Um pouco assustado, com o que acabara de ver e ouvir, pois não é sempre que se depara com uma fada, o menino se entusiasmou e não via a hora de embarcar na carrinhola e retornar ao sítio para contar a todos como ele iria receber a medalha na outra cidade.
A fada lhe disse que o encantamento da carrinhola terminaria logo após o retorno da cerimônia de entrega. A cadeira motorizada seria uma de encosto reclinável e ajustável, com amortecedores nas rodas traseiras desenvolvida com uma tecnologia estrangeira, que iria lhe proporcionar muito conforto. Ganharia mobilidade em todos os terrenos da outra cidade.
Para a cerimônia, a fada disse ainda que ele usaria um uniforme novo e ainda seria transportado por um motorista particular, assim como o cocheiro da carruagem da cinderela, muito bem vestido que gentilmente puxaria ou empurraria todas as portas por onde quer que ele fosse.
Durante a cerimônia, assim que anunciaram seu nome, todos os espectadores lhe aplaudiram em pé. Recebeu a medalha e ouviu de quem a entregou que ela seria um amuleto para não desfazer o encanto da fada. Então ele nunca mais a tirou do peito. Sua carrinhola se transformou para sempre na tecnológica cadeira de rodas. Quando precisasse viajar novamente o cocheiro estaria a sua disposição.
Hoje ele viaja bastante, vai ao encontro de outros estudantes palestrar sobre “A importância do uso da carrinhola na confecção do alicerce das construções populares individuais e coletivas”.
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