13 – UNO CICLO

   Dentre todas as peripécias que pode aprontar um farmacêutico o atrevimento de olhar para o glúteo, vulgarmente conhecido como nádegas, de suas clientes no momento da aplicação de uma injeção intramuscular seria, de longe, o mais abusado. Neste momento a técnica, a atenção, a experiência e a responsabilidade se misturavam em um misto de prestação de bons serviços à comunidade e satisfação pessoal. Bons serviços pelos quais, o prestador, não recebia um centavo. Cobrava apenas, e tão somente, o equivalente ao material descartável. Tão bom no que fazia que era conhecido como “Mão boa”.

   Seriam os farmacêuticos as pessoas mais invejadas da redondeza quando o assunto fosse a descrição elogiosa daquela passante, pela calçada do estabelecimento, sua cliente de bons serviços. O jargão “que gostosa!” era o comentário máximo emitido pelo confidente detentor da visão das partes pudicas, daquela cliente. Um seleto grupo, diga-se de passagem, porque para a maioria dos pacientes injeção intramuscular era para ser aplicado no braço. Alguns clientes homens até se atreviam ao inusitado ato de baixar as calças e mostrar as nádegas. Ato reprovado pelo aplicador, para os quais o mais aconselhável era aplicação no braço.

   Algumas medicações para aplicação intramuscular por suas particularidades recomendavam o músculo glúteo de preferência, mas alguns clientes insistiam em não mostrar a zona do corpo onde o sol não batia.

   Se a medicação fosse líquida, não oleosa e de consistência fluida o músculo deltoide era utilizado sem problemas, mas nas medicações oleosas e suspensões aquosas, aquelas que vinham com a ampola com líquido para se misturar no frasco do pozinho, eram, ou deveriam ser, aplicados em regiões de maior musculatura com grande irrigação sanguínea e com facilidade para dispersões. Nestes casos o músculo glúteo era o indicado, mas como comentado “deveriam ser”. O cliente oferecia o braço dizendo “vai aí mesmo”.

   Uma medicação revolucionária que passou a ser oferecida nos balcões das farmácias foi a “pílula injetável”. Com embalagem tarja vermelha, aquela vendida com prescrição médica, mas que era facilmente comprada sem esta. Tratava-se de uma medicação para controle de ovulação com uma posologia bem mais prática em relação ao mais popular dos contraceptivos, por ser barato, a pílula tomada por via oral. A paciente tomava uma injeção da dose mensal e ficava livre de ter que tomar uma pílula todos os dias. Procedimento em que às vezes ocorriam esquecimentos e atrasos menstruais indesejados. Tratava-se de uma ampola, de consistência oleosa, contendo um ml do suplemento hormonal para liberação lenta dentro o prazo estabelecido.

   Em verdade o advento dos métodos anticoncepcionais representou a liberdade sexual das mulheres e alteração de toda dinâmica social vigente. A começar pelo poder que as mulheres passaram a exercer, como por exemplo o de decidir quando, quantos e mesmo se teriam filhos. Com este planejamento ela pôde se dedicar a outros afazeres, gozar sua independência e gozar.

   Mesmo com este controle, a população mundial nunca parou de crescer. O sexo deixou de ter a exclusiva finalidade de procriar e passou a ser praticado de forma inconsequente, leviano, irrefletido, libertino, negligente, frívolo e fútil, mas com a vantagem de se tornar mais intenso. Fazer sexo virou sinônimo de fazer amor.

   O uso da medicação não interferiria no prazer sexual, a não ser no quesito estimulante, pois a segurança proporcionava uma liberalização acentuada.

   Tratava-se de um método para evitar a gravidez, mas que ao se interromper seu uso a fertilidade retornava em período muito curto além de poder ser usado por mulheres de qualquer idade, desde que os fatores que o contraindicassem fossem considerados. Era uma medicação em que as vantagens do seu uso geralmente superam todos os riscos. Somente mulheres fumantes e com mais de trinta e cinco anos de idade representavam uma exceção ao seu uso.

   Depois do lançamento da pílula injetável as clientes procuravam o farmacêutico para se informar da novidade e para saber se poderiam ou não fazer uso. A primeira orientação que o profissional balconista dava era de que elas deveriam procurar um médico para que este atestasse o seu uso, mas se não fosse possível ele talvez pudesse fazer algum esclarecimento. Este interesse se devia ao fato de que para se usar a medicação, a cliente receberia uma agulhada mensal, de preferência nas nádegas.

   Geralmente as clientes já vinham orientadas por alguma amiga que já fazia uso da medicação e sobre esta só teciam elogios. Que era uma maravilha, cem por cento eficiente e sem efeitos colaterais. A resposta para alguns questionamentos sobre a medicação só interessava como resposta que não teria problema algum e que elas poderiam usar tranquilamente, fora isso, elas se encaminhavam para outra farmácia, até encontrarem a resposta desejada. A faixa etária das possíveis usuárias do novo método favorecia o interesse em bem atender a cliente e a buscar a todo custo satisfação para ambos.

   A posologia era bem prática principalmente se a cliente estivesse agindo com segundas intenções ou intenções obscuras.

   O sexo sempre foi tabu para os baluartes da moralidade e sua prática reprovável quando feito fora do casamento. Quem se arriscasse a confrontar com tais conceitos ou era discriminado ou teria que fazer tudo às escondidas. Neste caso teria que contar com a complacência de alguém, coisa fácil de se encontrar no meio comercial.

   A serviço da preferência da cliente o sigilo era a alma do negócio.

   As clientes que se arriscaram nesta seara e que procuraram o estabelecimento daquele farmacêutico encontraram o que procuravam. No primeiro contato a cliente foi para se informar se tinha, quanto era e se tinha enfermeiro para aplicar. Aplicavam, mas não era enfermeiro, era o balconista mesmo, o conhecido “mão boa”. O que seria preciso para tomar a injeção? Era a pergunta essencial. Que estivesse no dia certo do ciclo menstrual, a resposta irrefutável. Como a cliente não reunia todas as condições para o uso imediato, dizia que voltaria depois. A propósito perguntava se qualquer mulher poderia fazer uso? Ao que o farmacêutico respondia com uma bateria de perguntas e dependendo das respostas não haveria nenhum impedimento. Só não poderia tomar se estivesse amamentando, se tivesse problemas cardíacos, mas isto quem atestaria seria um médico, que ficasse bem esclarecido!

   Passados alguns dias a cliente procurava a farmácia disposta a fazer uso do contraceptivo, mesmo não tendo receita médica, mas se não pudesse comprar não teria problemas, ela dizia, conforme fosse iria procurar outro estabelecimento. Uma afronta ao prestativo farmacêutico balconista.

   Muita confusão causou o advento da injeção mensal para evitar gravidez. Muitas clientes acreditavam no uso e efeito imediato da medicação. Uma coisa que a pílula do dia seguintes, que surgiu décadas depois, iria atender a este seguimento. Como os encontros eram furtivos, elas achavam que bastava passar na farmácia, tomar a injeção, e partir para o encontro. Ledo engano. Nestes casos o farmacêutico orientava, para contornar momentaneamente o problema, o uso da camisinha, opção reprovável e descartada como solução, entre os conservadores. Muitos homens ainda se achavam no direito a não optar por esta escolha, e contavam aquela historinha de “chupar bala com papel e tudo”. A cliente teria que deixar para outra hora ou cair no risco de uma gravidez indesejada. Estes encontros furtivos coincidentemente aconteciam no seu período fértil, ou seja, quanto mais proibido, mais gostoso.

   Depois de eliminar todas as restrições quanto ao uso, certificar-se sobre o período exato do ciclo menstrual da cliente, acertar o preço e fazer o troco, ambos adentravam a salinha de aplicações.

   Ao dizer à cliente que a medicação só seria ministrada nas nádegas, pois tratava-se de uma medicação oleosa, de lenta absorção e necessário ser aplicado em regiões de musculatura maior e mais irrigada, por isso só no glúteo. Além disso a bula recomendava tal procedimento. Mesmo assim, ouviu da cliente que era para aplicar no braço mesmo, onde estava acostumada tomar injeção. O farmacêutico que não possuía um poder de persuasão forte, seu repertório não era amplo, e no balcão da farmácia outros clientes o aguardavam para atendimento, concordava e ministrava contrariado o conteúdo.

   Ele bem que precisava de melhores condições para bem exercer seu ofício e entre aquele braço magro e uma nádega, precisaria com certeza a última opção. Ele prevenia, em tom de ameaça, a cliente para a dor que ela sentiria por pelo menos uns dias. A cliente se defendia do assédio dizendo que, conforme fosse, no próximo mês aplicaria nas nádegas, para se certificar das preventivas do farmacêutico. Esta promessa nunca se concretizava.

   Outra cliente que buscava pelos préstimos do farmacêutico era bem mais desinibida e era uma típica tomadora de anticoncepcionais injetáveis. Jovem, de belas feições e que enchia de entusiasmo o pacato balconista e aplicador. Mensalmente por lá aparecia e, devido a fidelidade, solicitava ao farmacêutico “a de sempre”. Este, prontamente se dirigia para a salinha de aplicações e à sós com a cliente ministrava a medicação responsável por manter a musculatura da coxa bem definida, aquela nádega com uma textura almofadada propícia para proporcionar a melhor das satisfações mundanas.

   Para facilitar o trabalho do aplicador, a cliente, levantava a saia, abaixava uma aba da calcinha, relaxava o glúteo, e exalava a fragrância entorpecedora, que só a proximidade com intuito podia proporcionar. O farmacêutico aplicador se esbaldava demonstrando suas melhores qualidades, injetando vagarosamente aquele pequeno volume oleoso, tendo aquelas ideais condições de trabalho. A cliente o agradecia e dizia que não tinha doído nada e que ele tinha “mão boa”. Boa, mas não boba em atendimento à ética profissional. A ponta de seus dedos, pelo menos aqueles que seguravam o algodão embebido em álcool, desenvolveram uma sensibilidade invejável. Era por ali que sentia toda a textura. Ainda em atendimento a solicitações da cliente, ele grudava um pedacinho de esparadrapo no local da picada, para estancar eventuais sangramentos. Nesta oportunidade novamente tocava aquela textura. Das datas marcadas no calendário da farmácia, aquele em que, em nome da moral e dos bons costumes, encontrava-se estampado, nos primeiros seis meses do ano, o sagrado coração de jesus e na outra metade do ano nossa senhora Aparecida, uma delas era o dia do Uno Ciclo daquela inominável fiel cliente. Tomar o nome dos clientes era uma das coisas que o balconista não fazia e ao se referir a um deles forçosamente teria que adjetivá-lo. A do Uno ciclo era a cliente mais esperada pelo farmacêutico.

Em uma das oportunidades eles não ficaram à sós na salinha, ela tinha vindo acompanhada. O acompanhante pode ver de perto como era aplicado o aplicador em seu trabalho. A cliente repetia o ritual e oferecia aquele glúteo carnudo, liso e sem estrias para o farmacêutico caprichar na aplicação. O acompanhante resignado olhou a sena com desconfiança. Seria somente aquilo que acontecia realmente? Se ele perguntasse ao farmacêutico, este diria que sim, que se tratava de uma relação comercial e quanto muito de confiança e respeito. Diria também que por razões técnicas, precisava ter aquela ampla visão da região onde seria aplicada a medicação.

   Nunca desviara o olhar, muito embora em mais de uma oportunidade buscou, mesmo que de relance, ver, nem que fosse um “chumacinho” dos pentelhos escapulindo da calcinha rendada, mas nuca logrou êxito. Apesar de toda relação de confiança e respeito a extrovertida era reservada e tomava todos os cuidados.

   O acompanhante pagou, agradeceu pelo atendimento e, pela reação da cliente, não tinha gostado do que vira. O farmacêutico bem que desconfiou se penitenciando. O que teria feito ele, além dos bons serviços?

   A verdade é que ela nunca mais deu as caras pelo estabelecimento, deixando o farmacêutico na expectativa. Outras clientes vieram e deixaram o glúteo descoberto para o delírio do aplicador, mas igual àquela, nunca mais.

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