14 – IMPACIENTE PSIQUIÁTRICO

   Quando o expediente da tarde começava, além do sol frontal que batia no balcão de vidro e o sono aparecia provocado pela falta da sesta, a clientela vespertina se achegava. Um televisor Telefunken sintonizado na Globo exibia “vale a pena ver de novo”, tocando a trilha sonora no ambiente.

    O que se chama de clientela vespertina da farmácia é o típico cidadão brasileiro que busca atendimento público no serviço de saúde. Ele saiu de casa na madrugada, embarcou no primeiro coletivo, passou pelo posto da região, pegou senha para o ambulatório, que fica no centro da cidade, com atendimento iniciando-se às treze horas, por ordem de chegada em qual, ele nunca será o primeiro a ser atendido. Nesta via sacra, já perdeu o dia de serviço, ficou sem o café da manhã e o almoço que foram trocados pelo pacote de chipa e um saquinho com Tubaína, sugado por um canudinho.

   A fachada da farmácia estendia o toldo para a proteção do sol e aguardava o fim da tarde torcendo para que ele não castigasse tanto.

   O serviço de ambulatório da psiquiatria do hospital, que ficava bem próximo ao estabelecimento, era para onde se deslocavam os pacientes, que conseguiram senhas no posto do bairro, e que precisavam deste tipo de atendimento e que só encontravam no Centro.

   Quando os médicos começavam a liberar as prescrições psicotrópicas para seus pacientes, muitos atravessavam a rua e adentravam o estabelecimento. Ali encontravam, na dose e quantidades recomendadas, os remédios controlados que controlariam as perturbações psiquiátricas até a próxima consulta, agendada para dali a um mês, dependendo da disponibilidade dos psiquiatras.

   A farmácia atendia a clientela e guardava no cadastro interno o nome do comprador, o número da identidade, o vulgo RG, e o endereço. Parece um detalhe, mas para um paciente deste tipo de atendimento, ou seu acompanhante, portar estes documentos ou tê-los na memória era a maior dificuldade. Muitos preferiam ir até ali muitas vezes por causa desta praticidade.

   Uma das clientes, Maria Auxiliadora Sá da Costa, tinha nos seus apontamentos o nome de Maria Auxilia, nome bem fora do comum, que por muito tempo foi utilizado no cadastro. Até o dia em que foi preciso se dirigir à cliente. O Maria Auxilia pareceu um tanto quanto reservado a uma intimidade. Ela gentilmente se adiantou e emendou como Maria Auxiliadora, às suas ordens. Como foi constatado a seguir que o Auxilia foi abreviado de Auxiliadora, pelo atencioso atendente do posto de identificação, emitindo o nome abreviado no RG, algo que só foi notado no momento da retirada deste. Como o tramite para a alteração seria demorado, ficou usando o Maria Auxilia ponto e pronto.

   Era comum a procura destes medicamentos sem a devida prescrição. Por um motivo qualquer sobrou mês para a medicação, e o que era milimétricamente controlado, tornava-se um transtorno para pacientes e acompanhantes. Ficaria sem dormir até nova receita? entraria em depressão profunda? ou iria até a farmácia onde era cliente e contaria a mesma história da confusão na posologia, na perda de uma das caixinhas ou no descuido com o seu cachorrinho que abocanhou e mastigou uma das cartelas e que por isso dormiu direto pelo menos uns dois dias. Se o farmacêutico iria acreditar seriam outros “quinhentos”.

   Apesar das constantes fiscalizações da secretaria de saúde, que sempre encontrava o livro de registros em ordem, a contabilidade interna era outra. Sempre era possível quebrar o galho dos negligentes pacientes psiquiátricos. Além da clientela fiel outros apareciam na farmácia contando com a benevolência dos balconistas.

   Quando o remédio ficava em falta no estabelecimento, os pacientes ficavam doidos, literalmente! O que fariam sem o controle da doideira. Muitos se negavam procurar outros estabelecimentos, por mais próximo que fossem. Para muitos era ali que se comprava o remedinho.

   Numa oportunidade esta falta causou um descontrole tão intenso e nem adiantou argumentar que a distribuidora faria a entrega ainda naquela tarde. O paciente ameaçou se jogar na frente do primeiro automóvel que passasse pela rua em frente à farmácia. A dramaticidade foi tão intensa que seus gritos chamaram a atenção dos transeuntes que se aglomeraram próximo do estabelecimento. O doido descontrolado, que já estava sem medicação a alguns dias, correu em direção ao centro da rua, mas parou ao descer o meio-fio e ficou aguardando a melhor oportunidade. Deitou-se no asfalto, bem na faixa de estacionamento dos carros, e arrastando-se ameaçou alcançar o meio da rua e dali partir para a eternidade. Isso dependeria das rodas do primeiro automóvel, que por lá passando, acertasse sua caixa craniana e esmagassem sua cabeça.

   Por azar do incontrolado, quem por lá passava era um “Expresso Beiçudo”, nome carinhoso pelo qual os usuários do transporte coletivo chamavam os ônibus. Este estava sempre com pressa e sendo a farmácia localizada em uma superquadra, quando por lá passava já vinha embalado. O paciente que, solitariamente, protestava pela falta do seu fenobarbital, foi pego de surpresa e ao perceber que o tamanho da roda do ônibus era bem maior e bem mais duro do que o visto de outros ângulos de observação. Saltou, escapando para a calçada, no abrigo do toldo da farmácia. Calado, ofegante e espantado, olhou para o farmacêutico que também se encontrava em mesma situação, e falou:

   -Enquanto não chega o remédio, eu aceito um copo d’água.

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