Mané Livino era um legitimo senhor representante da terceira idade. Negro, barba rala sempre por fazer, testa larga e de ralos cabelos maltratados que quase nunca tiveram contato com um pente. Vestindo à moda da “miséria pouca é bobagem”, vestia-se de doações. Uma camiseta de candidato, uma calça frouxa, acertada na cintura com o auxílio de um cinto ou na falta deste um cadarço fazia as honras, o importante era não deixar cair, além do par de Havaianas formadas com cores diferentes. Dependendo da ocasião vestia camisa de manga, calça social e sapato lustrado, também mostrava água aos cabelos para facilitar o processo de fixação. Uma destas ocasiões foi quando ele tentou uma aposentadoria pelo Funrural.
Ele chegou não se sabia de onde e foi ficando, como se já fosse parte da vizinhança.
Fez sólida amizade com o vizinho farmacêutico, com os taxistas e com o dono do botequim. Aos poucos foi possível conhecê-lo melhor.
Animado, sempre disposto a uma boa prosa, ia, aos poucos, revelando seu passado a quem lhe desse ouvidos, além de ser pouco dado a maiores esforços (trabalho).
Logo no primeiro contato já era possível ficar seu amigo. Dizia que estava morando nas imediações, vizinho de um conhecido construtor, para o qual estava trabalhando.
Assim, ia contando que fora bate-pau no interior do estado de São Paulo, mesmo tendo residência fixa do outro lado da ponte, aqui no Estado. Para trabalhar, atravessava o rio e ia para a delegacia onde cumpria o expediente. Nas folgas fazia questão de voltar para casa e ficar junto à família. Fora casado e pai de cinco filhos.
Contava ele que em uma dessas idas e vindas ficou sabendo, por outros, que enquanto ele batia pau em bandidos do outro lado da ponte, vossa patroa recebia visita que só eram vistas em sua residência quando em sua ausência. Como o recado foi dado por pessoa idônea, bastou saber dos fatos a versão de uma parte, nem quis saber da boca de sua patroa nem montar campana para surpreender o desavergonhado e passar à limpo aquela história. Constrangido, ficou com a parte que lhe feria o orgulho e quis desaparecer do mapa. Os relatos ouvidos por ele ficaram constantes nos autos.
Abandonou tudo o que tinha, emprego, filhos, mulher e casa, contava ele emocionado. Andou desnorteado por um tempo até que, achando ter chegado ao fim do mundo, parou em uma fazendo no meio do Pantanal. Ali arranjara emprego como peão e por onde permaneceu um bom tempo. Cansado de muita lida, outro casamento frustrado, e um desacerto com o encarregado da fazenda, largou novamente de tudo, desta vez o “de tudo” nem precisou de mala. Resolvido, tomou o rumo da cidade.
Na busca do que fazer para sobreviver, conseguiu um bico como “oreia” em uma obra na capital. No meio daquela empreita, ficou sabendo que o construtor precisava de vigia para a obra, serviço bem mais leve do que mexer massa e carregar tijolos.
Depois de um acerto, foi ser guarda de obra. Era ele quem tomava conta do pedaço quando os pedreiros encerravam o expediente. Chegava no fim da tarde e saía no outro dia cedo. Nos fins de semana e feriado tocava direto. Ganhava o necessário para se manter, contava ele para resumir como chegara até aquele lugar. A casa, ou o barraco, foi erguida no terreno do patrão. Nessa época vivia só, que nem passarinho tinha para dar um pires de água.
Nessa época, o amigo farmacêutico, trabalhava em um estabelecimento próximo à sua “residência”, que ele sarcasticamente chamava de “alçapão”, para compara-lo a uma armadilha, que só pegava “passarinha”. Para entrar ou sair, só com sua permissão, pois a chave ele carregava sempre amarrada no pescoço. O terreno era cercado por muro alto e entulho de sobras de outras obras.
Como era muito expansivo, ficara logo conhecido de outros frequentadores da redondeza. Seu paradeiro ficava no entorno de um hospital, o maior da cidade. Apesar de nunca ter precisado dos préstimos dos médicos e enfermeiros, conhecia vários deles.
Seu Mané, como passou a ser tratado, teve o azar de ver o patrão morrer infartado sem ter-lhe assinado a carteira. O destino teria lhe aprontado outra, e como sempre teria que se virar, contar com a força das amizades para se manter. Por benevolência da viúva, continuou morando no abrigo (alçapão), por tempo indeterminado, ou até que a viúva encontrasse uma saída para aquele infortúnio. Com o tempo sua permanência no local foi mais conveniente.
Passaria para a categoria de desempregado, pois com a morte do patrão, o acordo trabalhista de boca não vigorou na ausência deste. Ficaria encostado, vivendo de favores de uns e de outros, mas sem um rendimento certo. Tinha que achar um jeito de sobreviver, pois pelo menos o abrigo estava garantido.
Tentara uma aposentadoria pelo antigo Funrural, oportunidade em que vestia o gabardine e os sapatos lustrados, mas foi pego na entrevista. Mesmo tendo idade para se aposentar, nunca teve carteira assinada, pelo menos com esta sua nova identidade. Fora instruído pelo advogado do sindicato, mas o funcionário parece que já conhecia o golpe. O jeito foi ficar por ali fazendo um biscate aqui outro ali, para manter o gasto.
Para garantir a “bóia”, se enrabichou com dona Maria, uma diarista de sua vizinha e que depois de viúva, lhe disse que nunca topara com outro homem. Depois disso, todos os dias, “Sêo Mané” tinha até hora de almoço. Profundo conhecedor da causa foi logo se engraçando por ela, sendo fisgado pelo estômago. Para o resto, fumo e cachaça, serrava “deizão” de um e de outro, mas nunca ficava na mão.
Com o farmacêutico sempre era direto, na tentativa de serrar-lhe algum dinheiro, se punha a vigia-lo por um determinado tempo e quando menos este o esperava, fuzilava: “- Me quebra em dez!” ou “- Sabe o que você faz, me empresta dez!” Não tinha como dizer não. Prontamente lhe atendia, despretensiosamente, conhecendo o resto da história. É claro que em troca, ele se sentava à soleira da entrada do estabelecimento comercial e debulhava outras histórias de sua vida. Às vezes repetia, mas na introdução frisava que se ele já tivesse contado, ele ia contar de novo, pois nunca se lembrava.
Do tempo em que era “bate-pau” na Civil em São Paulo, viu presos cagarem nas calças de tanto apanhar de delegado. Tinha preso que confessava ter matado até Jesus.
Quando falava sobre o abandono da sua primeira mulher e os filhos, deixava pairar dúvidas se seria mesmo verdade o ocorrido. E se alguém lhe perguntasse: “-Mas você viu alguma coisa?” sentia um grande remorso. Essa dúvida lhe era cruel, isso lhe foi motivo de grande arrependimento, chegando às vezes as lágrimas. Um alívio certeiro, nessas horas, era uma dose de 50 centavos de uma cachaça curtida em raizada, que o dono do boteco lhe servia, e aja cachaça para aliviar a dor, porque a dúvida lhe perseguia a muito tempo. Em algumas oportunidades as doses ultrapassavam a tolerância e o faziam retornar para o alçapão, cambaleante, arrastando o chinelo e tateando os muros. Isso quando não encontrava apoio de um solícito companheiro de copo.
Uma coisa marcante era que vez ou outra Sêo Mané Livino era visto na companhia de outras mulheres, que não dona Maria, e elas eram bem mais novas que ele. Quando perguntado ele simplesmente respondia que eram suas namoradas. Coisa de causar inveja ao seu círculo de amigos.
“- Ô Mané, qual o segredo?”
Em resposta vinha sempre uma desculpa esfarrapada.
“- Sou Mané Livino, querido das meninas!” Dizia ele.
“- Será que o Homem tem mel na ponta?” comentavam os incrédulos viandantes. O que se via em verdade era que ele andava com as “meninas” e as levava para o tal do alçapão e por lá ficava um bom tempo, algumas até pegavam pouso.
Com o passar do tempo Sêo Mané, que já não era tão novo, foi sentindo os efeitos da idade avançada, dos exageros alcoólicos e a demasiada vida sedentária.
Médico e medicamentos nunca lhe foram problemas, pois ele era amicíssimo dos enfermeiros e estes lhe prestavam assistência necessária. Um deles, além de enfermeiro era cabeleireiro, e lhe cortava o cabelo na faixa. Receita na mão, medicamento comprado, só faltava cumprir as determinações médicas: fazer dieta, não beber, exercitar-se, etc…. O problema do Sêo Mané era aminésia, melhorava um pouco e começava a esquecer os remédios e as recomendações.
Um dia passou tão mal que teve que ser levado ao hospital, sendo inclusive necessário sua internação. Como era uma pessoa bem quista o serviço de acompanhamento era revezado pelos conhecidos enfermeiros, dentre eles o cabeleireiro. Permanecera no hospital sob cuidados médicos e a alta só seria dada com melhora dos sintomas, assim lhe disse a equipe médica responsável pelo atendimento.
No outro dia bem cedo chega ao estabelecimento, em que o farmacêutico trabalhava, o assistente social do hospital. Contou-lhe que Sêo Mané, inexplicavelmente, tinha fugido do hospital. Soube pelo enfermeiro que na farmácia poderiam informar onde Sêo Mané morava. “-Só pode ter fugido para lá!” Disse o Assistente social.
Surpreso com o acontecido, o farmacêutico levou o Assistente até o alçapão, encontrando-o tudo fechado. Bateram, bateram, até ouvirem algum barulho vindo de seu interior. Diante disso, com muita dificuldade, o farmacêutico escalou o alto muro e conseguiu abrir o portão com a chave que se encontrava pendurada no pescoço do morador.
Lá dentro encontram Sêo Mané estirado na cama seminu balbuciando palavras desconexas. Procuraram melhor vesti-lo e o carregaram de volta ao hospital de onde não mais voltou, faleceu poucas horas depois, sendo depois sepultado como indigente.
Justiça seja feita a este breve companheiro, dono desta história, nesta trajetória chamada vida. Histórias que se cruzam e em seus pontos de intersecção, marcam.
Pelo que parece esta história não tem nada de exclusividade, a não ser que se conte detalhes omitidos e que a deixe com ares de extraordinária.
No dia da fuga do hospital, quando o farmacêutico e o assistente social chegaram para socorrer Sêo Mané em seu alçapão e o encontraram seminu, estirado na cama, balbuciando palavras desconexas, se depararam com o que, assim achou o farmacêutico, ele chamava de “querido das meninas” à mostra. Ali estavam diante do segredo(ão) que atraia aquelas meninas, suas namoradas como dizia. Aquele negão tinha, no estado em que se encontrava, um legítimo cabo de guarda-chuva, mas era cabo para um daqueles de vendedor da Kibom, tamanho GG para ser mais preciso e que dava para proteger, da chuva, quatro ou mais pessoas. Se o trem estivesse duro estaria tatuado: Lembrança do carnaval de Pernambuco, mas no momento em que foi avistado o “querido das meninas” se encontrava amolecido. E mesmo mole tinha no mínimo o dobro da média nacional.
O farmacêutico disfarçadamente olhava mesmo não querendo olhar, pois seria a primeira e sabe-se lá senão a única, em que viria ao vivo aquela excentricidade, e que até lhe causara inveja. Ele também observara que o assistente também fazia o mesmo. O jeito foi tentar vestir uma calça larga e levar o mais rápido possível o paciente para o hospital.