Outra de farmacêutico aconteceu numa madrugada em que o protagonista estava em um dos plantões.
Trabalhar à noite, e nas madrugadas, apesar de ser muito desgastante, pode ter sua compensação. Tem-se contato com um mundo, muitas vezes chamado submundo, e com suas peculiaridades. Seus atores desprovidos de máscaras surgem sabe-se lá de onde e aproveitam-se da ausência dos bastiões da moralidade, que a estas horas estão em sono profundo, e usufruem, por tempo determinado, a liberdade de ser o que são.
Nos Plantões é muito comum fazer atendimentos aos profissionais do sexo, indelicadamente tratados como putas, “viados”, além de seus respectivos usufrutadores, que em outras horas do dia reprimem seus sentimentos por força da ditadura moral vigente. Também são atores, os doentes, moradores de rua, ladrões, policias e outros desafortunados da sorte.
Foi num destes plantões que o telefone tocou e por seu sinal característico, deu para identificar que a ligação era interurbana.
– Drogaria Fulana Beltrana, bom dia! Depois da meia-noite se fala bom dia. Seu farmacêutico às suas ordens!
– Bom dia!
Seu farmacêutico identificou tratar-se de uma voz feminina que inclusive sussurrava ao telefone.
A voz, que devia ser de um lugar distante, foi logo adiantando:
– Moço, por favor eu preciso de ajuda e para começar eu peço sigilo absoluto. Posso contar com o senhor?
– Pois não! O farmacêutico já tinha dito que estava “`as suas ordens”.
– Preciso do nome de um remédio que sirva para dor e ardência na urina e corrimento vaginal, o senhor pode me informar?
– A senhora já foi ao médico?
Do outro lado da linha a voz diria: “seu idiota, se eu tivesse ido eu estaria ligando a estas horas para o senhor?”, mas não disse, apenas lamentou-se da situação.
– Não tem como, o lugar onde moro são poucos os médicos e eu ainda não me vinculei a um, por isso minha preocupação. Eu não posso me expor assim, por muito menos já seria motivo de comentários. O senhor pode me dar os nomes dos remédios?
O farmacêutico irá se cercear de uma análise de um histórico e então poder, dentro das limitações que a situação impunha emitir um laudo precário. Levaria em conta todas as possibilidades de efeitos colaterais e indesejados.
Perguntou-lhe pelos motivos que a levaram a buscar aquela forma de atendimento e naquele horário. Ela lhe respondeu tratar-se de um legitimo caso relacionamento extraconjugal. Ela se envolvera em um frenético caso de amor com outro homem mesmo sendo casada. O marido viajava e ela se aproveitava de sua ausência para se encontrar com o “outro”. Nunca tinha dado nada de “anormal”, mas desta vez a coisa descambou. Tinha reclamado com o amante, que negou sentir algum sintoma, inclusive lhe disse que para ele estava tudo acabado e a acusou de ter contraído com um “outro amante”. Nunca usaram preservativo, pois a única preocupação de engravidar não aconteceria pois já era operada. O seu desespero aumentava quando pensava que era casada, mãe e uma senhora respeitada no segmento social que pertencia. Seu círculo de amizade era pequeno, já que a cidade era pequena. Outros parentes estavam longe e nestas horas o isolamento parece maior. Reconhecia a encrenca que tinha se metido, que teria que encarar a verdade, mas se ela se livrasse daqueles sintomas na primeira oportunidade consultaria um médico e faria um tratamento mais adequado.
O farmacêutico perguntou de algum outro sintoma, quais sejam: de quando havia começado a sentir e etc. A oculta paciente disse que tinha percebido a uns dois dias, e que a partir daí passou a martelar as possibilidades de resolver a situação da forma mais sigilosa possível. Como entraria em um consultório, ou em uma farmácia, e descrevesse os sintomas sem ser pega em alguma mentira? Não teria nem como fazer uma urocultura e exigir sigilo, em um lugar onde todos se conheciam. A verdade começa com as viagens do marido. Tinha confidenciado, até aquele momento, com a empregada que lhe sugeriu o telefonema. Outra saída sugerida pela experiente empregada foi que ela coletasse amostra de urina que ela entregaria em seu nome no laboratório, mas haveria a necessidade do pedido médico e ele ia querer examiná-la. A empregada até se dispôs a realizar a consulta, descrever os sintomas e ser examinada, mas não garantiu perseverança ao responder aos questionamentos do médico. Seria muito arriscado e ela estaria envolvendo outras pessoas. Ela veria com alguém que conhece alguém, que trabalha no laboratório, um jeito de fazer o exame sem pedido médico.
Se caso conseguisse o exame, o farmacêutico diagnosticaria norteado por ele, mas enquanto não se definia sobre a realização do exame, o jeito foi cercar os sintomas pelo uso dos bactericidas e fungicidas de amplo espectro.
O farmacêutico desconfiou que o amante pudesse ter uma vida promíscua. Disse à oculta cliente que seria possível cercar as infecções mais comuns com o uso de bactericidas e fungicidas de amplo espectro disponíveis no mercado.
Os medicamentos poderiam ser comprados sem problemas. A empregada, em sua disposição, conseguiria comprá-los sem que alguém a importunasse. Encontrando-os para comprá-los o preço também não seria problema.
– A senhora vai tomar um vidro de Gonodacil, são dois comprimidos, dose única. Gonodacil foi uma herança da guerra do Vietinã. As baixas na tropa norte-americana, por gonorreia, estavam prejudicando o desempenho nas trincheiras. O governo abriu concorrência para que algum laboratório farmacêutico produzisse um medicamento de ação rápida e de curto tratamento. Mesmo no “front” a dose poderia ser ministrada sem necessidade de afastamento. Como a guerra acabou, mas a gonorreia não, despejaram o excedente de Gonodacil neste lugarzinho subdesenvolvido. Na oportunidade a AIDS começava a mostrar suas garras, ter gonorreia era uma questão de sorte. Era o que a oculta dona da voz ao telefone precisava: tratamento rápido.
– Depois de seis horas vai tomar um vidro de Imortal probenecid. A senhora vai comprar uma caixa com um frasco com o líquido e um envelope com um pó. Vai preparar misturando o pó no líquido, agitar e tomar tudo de uma vez. O Imortal era um antibiótico da segunda geração que ao ser administrado com o Probenecid prolongava sua ação, que já era ampla.
– O outro remédio se chama Brazilmicina. Vai tomar no outro dia, um comprimido duas vezes ao dia por três dias. Fora disso eu não conheço medicamento que controle estes sintomas que a senhora está me relatando. Com o resultado de um exame nas mãos a senhora não precisaria usar tudo isso.
A oculta voz desiludida ao terminar de anotar tudo ainda perguntou se precisava fazer mais alguma coisa. Das próximas vezes o uso da camisinha seria obrigatório, mas isto seria em um futuro promissor, por enquanto ela queria se ver livre desta.