18 – A MORDIDA DO LEÃO

   Já houve um tempo em que o humor dos cachorros determinava a velocidade do vento. Seria tempo do cachorro louco o período do ano em que os domesticados animaizinhos se transformavam em selvagens feras indomáveis. Latiam e rosnavam ao menor dos gravetos estalados pelo ressecamento. Era quase que senso comum: Os cachorros mudavam o humor e pronto.

   Atacar pessoas e causar algum ferimento era uma resposta a alguma provocação ou facilitação do negligenciado ato de aproximação, por descuido, da fera que estava quieta em seu canto.

  Feridos, pelo ataque canino, deviam ser encaminhados ao serviço público de saúde e dependendo do histórico, outras providencias seriam tomadas. Responder um questionário sobre a saúde do animal, se a carteirinha de vacinação de ambos estava em dia e se o animal estava vivo depois do ataque. Era, e ainda é, um procedimento de praxe. Dependendo do caso uma série de vacinas, diga-se agulhadas, deveriam ser ministradas, além do monitoramento do paciente e do animal. Raiva canina já fez parte das estatísticas.

  No balcão da farmácia chegava os atacados em busca de materiais para curativos. Era o que o estabelecimento podia fazer além de recomendar uma visita ao posto de saúde.

   A cliente chegou, andando com certa dificuldade, solicitando o material básico para um curativo. Dentre os itens solicitados, levava um frasco de água oxigenada, um vidro de mertiolate, um pacotinho de algodão, um rolinho de gaze, um rolo de esparadrapo, um tubo de pó secante e um tubo de Nebacetin, uma pomada cicatrizante e bactericida, que não podia faltar em casa. Depois de tudo embrulhado, pagava e, com aquele andar sofrido, seguia calçada à frente.

   Seria um atendimento corriqueiro, destes que o entra e sai de clientes no estabelecimento embrulharia a memória dos atendentes. Um próximo atendimento favoreceria a fixação do semblante e reconheceria a cliente como uma freguesa.

   Ainda com dificuldade no andar a cliente retornou, mais tarde, trazendo consigo o embrulho com os materiais para curativo comprados naquela manhã. Perguntou se ali eles faziam curativo. Como a resposta foi afirmativa, ela perguntou o quanto cobravam.

   Quando o material era comprado no próprio estabelecimento, não haveria outro custo. Então ela estava habilitada a receber os préstimos. Exigiu apenas que o farmacêutico mais velho fizesse o procedimento.

   O local improvisado seria a própria sala de aplicações, adaptado para pequenos curativos. Coisa como a limpeza de cortes acidentais, arranhões, ralados de asfalto, pequenas cirurgias, furúnculos e outros procedimentos não demorados. Depois de renovados os esparadrapos os clientes-pacientes eram liberados.

   A cliente, depois de ficar à sós com o farmacêutico, disse que tinha sido mordida por um cachorro. Que não tinha ido ao posto, que conhecia o dono do cachorro e que ele não estava doente, só era muito bravo e que estava acostumado atacar os outros, ainda mais à noite, hora em que ela havia sido atacada.

   Mesmo com todo este histórico ela já deveria procurar o posto de saúde, lhe disse o farmacêutico, e que não era bom negligenciar. O animal poderia estar com raiva e ela poderia estar correndo sério risco de ter contraído a doença. Algumas loucuras não têm cura, como era a oriunda da mordida de um cachorro doente. Dependendo do local da mordida e do cachorro o(a) afetado(a) poderia até ficar louco, mas a loucura seria outra.

   Ela, a cliente, até concordou em procurar o serviço, mas seria depois do curativo, que era o que mais precisava naquele momento.

   Como a sala de aplicações tinha dimensões restritas, naquela improvisação ela teve dificuldade para mostrar o local onde estava o ferimento. O animal abocanhou a parte interna superior da coxa de uma das pernas, bem próximo das partes íntimas, como ela havia dito ao farmacêutico antes de levantar a saia e mostrar-lhe o estrago.

   O ataque sorrateiro deixou carimbada a maldade incontrolada daquela fera desacorrentada e fora de uma jaula. O local ficou à mostra na tentativa da fuga, conforme descrição da paciente. Alguma parte seria atacada não restaria dúvida. Geralmente outras são comumente afetadas, mas a proximidade das “partes”, tornava constrangedor e ainda mais dolorido o ferimento. Este era um dos motivos para ela não ter procurado o posto de saúde. Precisava de um lugar mais reservado e discreto. Confiava no farmacêutico, já o conhecia de outros atendimentos.

   O farmacêutico se contorceu para melhor visualizar o rasgo dos caninos. Naquela posição chegou a ficar com vertigens. Abaixou-se até a altura das nádegas da paciente e assim, quando ela encurvou-se para frente, pode melhor avaliar o ferimento.

   Os pudores ficaram do lado de fora da salinha de aplicação. Naquela posição, o ferimento ficou bem `a mostra assim como as suposições de outros orifícios escondidos debaixo da calçola GG.

   Como se tratava de uma senhora as transparências foram preteridas. O local continha restos de algodão, gaze, esparadrapos e sangue coalhado, possivelmente restados de uma tentativa desesperada de um curativo malsucedido. O local da mordida era quase inacessível para pacientes não contorcionistas.

   Depois da varredura para assepsia, aplicação de pó secante, Nebacetin e fixação com o esparadrapo o local ficou com melhor aparência.

   O farmacêutico achava que a paciente deveria ficar em repouso por mais uns dias, até que os curativos trocados ficassem mais secos. Disse também que poderia vir trocá-lo todos os dias, sem nenhum custo. Um outro problema do qual ele a alertou foi a falta de atestado. Se não se consultasse no posto iria perder os dias de trabalho, por causa do repouso. E mesmo que não viesse a fazer repouso ele ainda achava muito difícil alguém trabalhar daquele jeito. A propósito, antes que alguém me pergunte:  do que é que vivia a da coxa mordida mesmo? Quis saber o farmacêutico.

   A paciente lhe disse que não ia precisar de atestado nenhum. Que iria voltar ao trabalho assim que estivesse melhor e que se não melhorasse logo voltaria assim mesmo, porque ela é quem fazia o próprio horário. E disse mais, que quando o cachorro a atacou ela estava trabalhando.

    – Acidente de trabalho! Salientou o farmacêutico fomentando assunto para espichar a conversa. A senhora fica encostada pelo INPS.

   – Eu faço programa meu filho! Disse ao farmacêutico que bem tinha idade compatível com este parentesco.

   E foi em um de seus programas que ela se descuidou e facilitou as coisas para o Leão, o nome da fera. Ela fazia ponto em um bar nas proximidades da farmácia. Sempre que precisava de algum medicamento ou perfumaria, dava preferência ao estabelecimento. Mas nunca deixou transparecer, até que o infortúnio revelou sua atividade.

   Ela tinha ido à casa de um de seus clientes. O atendimento em domicílio sempre lhe rendia um a mais. Em outras oportunidades se encontrara com o Leão, só que naquele dia ele não estava de bem com a vida. Depois do atendimento, e de deixar o cliente abatido, sem reunir condições físicas para acompanhá-la até o portão, ela resolveu atravessar o quintal e ganhar a rua pelo portão da frente da casa, lugar onde montava guarda o Leão. Ela deveria retornar ao seu ponto e prestar novos atendimentos, mas no meio do caminho foi atacada, sem chance de defesa, pelo Leão.

   Leão era o nome do animalzinho de estimação do cliente atendido em domicílio. Socorrida pelo cliente, que reuniu forças sabe-se de onde e aos berros amansou o Leão.

   Abatida por aquele momento de desatenção, conseguiu chegar em casa e se virar com o que tinha.

  Ao perceber que não tinha o que precisava, assim que pode, se deslocou com a maior das dificuldades até o estabelecimento e aprovisionou novamente a farmacinha de casa.

   Depois de adquiri-los, tentou utilizar os materiais e fazer um curativo, mas não teve sucesso, descobriu que teria que ser contorcionista. Tanto lugar para o leão morder e ele foi morder logo lá, bem perto de suas “partes”. Foi quando retornou à farmácia e conseguiu alguém para fazer o curativo.

   Depois de feito o curativo, o farmacêutico disse que o corte tinha sido grande e que talvez fosse necessário ir ao posto de saúde, pois talvez fosse necessário levar uns pontos no local, para acelerar a cicatrização. Ela também achava certo, mas… O leão poderia ser prejudicado, recolhido pela carrocinha, até ser sacrificado, virar sabão e isto ela não ia querer. Além do mais, lá no posto, iriam enchê-la de perguntas sobre o ocorrido e ela não estaria disposta a responder.

   Loucura por loucura ela ainda preferia a dela.

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