O estabelecimento comercial, além da presteza do atendimento no balcão, estendia também, a quem necessitasse, com atendimentos em domicílios. Seriam entregas de encomendas, serviços de auxiliar de enfermagem e afins. Dentro dos afins a prestação era ampla. Nos serviços braçais, que não constavam no catálogo do segmento “comércio varejista de medicamentos”, não existia cobrança, a não ser a intrínseca gentileza recíproca. Entre estes agrados tinha por exemplo a troca de lâmpadas, do gás da cozinha, de reparo de torneira, entre outros. Levar medicamentos ou alguma perfumaria eram os carros chefes.
As entregas eram feitas pelo funcionário que estivesse de “bobeira” naquele momento, ou ao mais novo dos contratados, mas se o cliente exigisse teria que ser o próprio farmacêutico.
Em suas entregas levava além de mercadoria, a quem estivesse incapacitado de se locomover até o estabelecimento, geralmente acamado ou de resguardo, uma palavra de entusiasmo. Estas visitas lhe renderam muita água gelada, cafezinhos e biscoitos. Às vezes era apenas de uma palavra que o paciente precisava, vejam o exemplo das visitas aos hospitalizados, quanta satisfação a quem recebe.
Entrega feita e acertado o troco, o farmacêutico sentava-se a convite, sem cerimônia, porque a conversa só estava no começo.
“Te contei que bateram no carro da minha filha?” e dai para frente o relógio parava. Os compromissos teriam que ser adiados para até o desfecho da narrativa ou até quando o farmacêutico achasse que já estava na hora. “Pois bateram! E sabem que era? O dono da floricuuultura! Aquele japonês safado!” Pelos termos iniciais que adjetivaram um dos protagonistas, a história seria de um verdadeiro quebra paus.
A cliente, que morava a poucas quadras do estabelecimento, era uma antiga moradora do local. Ali criara os filhos e os agregados. Sempre se orgulhava de manter a disciplina na educação destes. Às vezes se mostrava dura até demais. Era uma senhora boa de briga. Os vizinhos diretos guardavam rusgas de conflitos entre os animais de estimação, que quando não eram os gatos marcando território ou em cópula, era o barulho dos latidos dos cachorros à noite toda, sem falar nos galos na madrugada, no tempo em que eles eram permitidos. Se galhos de árvores frutíferas insistissem invadir quintal alheio eram para trazer sujeira, nunca oferecer o seu doce sabor. As mangueiras que insistiam em não servirem à francesa, lascavam os telhados num verdadeiro bombardeio de frutose. Nada para aquela vizinha poderia ser, se não na intenção do “azucrinamento”, como dizia a mãe da filha que teve carro danificado pelo japonês dono da floricultura.
Para ela a batida tinha sido intencional, pois a rua nem movimentada era. Aquilo era inveja do carro novo da filha.
“Na hora minha filha desceu e viu o para-choque avariado” continuou a narrativa. “o Japonês também desceu do carro e viu a merda que tinha feito, sabendo que estava errado, pois você sabe Isluiz (o farmacêutico), bateu atrás está errado!”.
A narrativa foi tomando forma e a história foi tendendo ao fim, para alívio do ouvinte do monólogo. Como podemos perceber, eu acho que o que o farmacêutico tinha dito até aquele momento, além do nome da moradora, quando bateu palmas, foi o valor da compra e o muito obrigado, quando guardou o dinheiro. Desta vez nem fez questão de entrar, ficou retido na porta da frente. A moradora de desafetos nas vizinhanças precisava desabafar com alguém a má sorte que estava sentindo pela filha.
A filha sempre morou com a mãe. Passou algum tempo em outro paradeiro, mas sempre que podias estava na casa, onde almoçava, jantava e às vezes pegava pouso. Este tempo foi por um curto período, quando a filha insistiu em se casar, mesmo desaconselhada pela mãe. Para esta, tudo que é homem não prestava e foi isto que fez questão de enfatizar no dia em que a filha chegou para o café da manhã e emendou com o almoço e os subsequentes pratos servidos.
A batida foi atrás, então o japonês estava errado, era este o veredicto da meritíssima vizinha, endereçada da entrega. Quem está errado que pague o prejuízo, seguia dizendo, e para isso nada melhor que um acordo, de cavalheiros. Isso ficou acordado e que quando a filha vítima da má sorte estivesse com o orçamento em mãos, que levasse até o estabelecimento que lá ele iria resolver, pois naquele momento ele estava com pressa e não poderia esperar “o Trânsito”. Entregou-lhe o cartão comercial, agradeceu a compreensão e disse até logo.
“Quando fizemos o orçamento, logo na manhã seguinte, sentimos a facada no bolso que seria o conserto”. “Dali eu fui com a minha filha no endereço do cartão”. A mãe era a fiel escudeira da filha, apesar de sempre achar que ela já era grandinha o suficiente para cuidar da sua vida, mas sabe como é, uma companhia a mais, numa hora destas nunca é demais. “Chegando lá fomos falar com o japonês da floricultura.”
“Isluiz, cê sabe o que aquele desgraçado nos disse quando nos atendeu? que não sabia do que se tratava, que estava ocorrendo algum engano e que o desculpasse, que ele teria mais o que fazer, naquele momento”. Isluiz fez uma cara de interessado que pouco interessava à interlocutora, ela queria era desabafar.
“O QUÊÊÊÊÊÊÊÊ?” Antecipou-se a vizinha, com um grito, em um tom inconfundível que só ela, num de seus momentos de fúria sabia emitir. “O senhor não é fulano? Não tem um carro tal? Não é o dono deste cartão?” Continuou no mesmo tom a narrativa do infortúnio. Quando falou do cartão gesticulou com quem quisesse esfregar na cara o interlocutor, tanto do japonês como do farmacêutico.
Tomou a frente da filha na tratativa com o dono da floricultura. “Olha aqui o prejuízo…” disse-lhe com o tom nas alturas, tomando das mãos da filha o papel do orçamento da concessionária, fazendo questão de mostra-lhe bem próximo dos olhos.
“O senhor pensa que está falando com quem?” desta vez o tom foi ameaçador, mas o dono da floricultura se manteve calado, segundo os relatos da monologa.
Fosse com quem fosse o japonês nem quis tomar conhecimento, e com convicção negou que alguma vez tivesse visto alguma das duas. “Sinto muito!” disse enfático.
A cliente então disse ao Isluiz em alto e bom som: “SEU FILHO DE UMA PUTA!…SEU CACHORRO. VOCÊ NÁO É HOMEM. VOCÊ NÃO HONRA AS CALÇAS QUE VESTE.” O volume da voz foi tão estridente que já devia ter chamado a atenção da vizinhança.
Depois disso ainda completou com o que mais tinha falado para o japonês: “EU VOU NA POLÍCIA, O SENHOR ME PAGA, NEM QUE SEJA NOS QUINTOS DOS INFERNOS.”
Dito isto, se despediu do farmacêutico se desculpando de tê-lo feito ouvir toda aquela história.
O farmacêutico ao retornar ao estabelecimento pode ver pelo caminho algumas pessoas, senão nas janelas ou nas portas das casas, em suas calçadas, agrupadas confabulando entre si e se virando em sua direção quando ele se aproximava.
No outro dia, logo pela manhã, um cliente vizinho do estabelecimento esteve por lá para comprar qualquer coisa. Aproveitou para prestar solidariedade dizer ao farmacêutico que ouviu toda a discussão da noite anterior entre ele e a vizinha das desavenças.
O farmacêutico logo se adiantou dizendo: “Eu não sou aquele filho da puta não!”.