PELA VIDRAÇA EU VIA

Sou do tempo em que os pais deixavam as crianças em casa, não trancados, mas cheios de recomendações. Meu pai tinha sua rotina e raramente estaria em casa fora do horário comercial. Minha mãe, como trabalhava em casa, esporadicamente tinha que resolver alguma coisa no centro da cidade.

Sempre estudei à tarde, dormia até altas horas da manhã. Nunca tive rotina de fazer tarefas, nem de estudar ou rever as aulas. Escola para mim era “ir à escola”. Minhas notas sempre baixas e recuperação todo fim de ano. Depois de muito tempo fui ter um choque de realidade. Pela manhã aconteciam as aulas de Educação Física, que eu chegava ao limite de faltas toleráveis.

Minha mãe, sabendo de nossa rotina, programava suas saídas e às vezes, ao retornar, esbravejava conosco, somos três irmãos, dizendo que aquilo era uma pouca vergonha, onde já se viu dormindo até aquela hora, com a casa para arrumar, as galinhas sem comer e o quintal sem varrer etc. No fundo ela estava mesmo era aliviada ao nos ver confinados dentro de casa. Eu até me preocupava com a minha falta de vontade, mas dormir nunca foi considerado pecado. Para minha mãe era melhor dormir de que mal acompanhado!

Mesmo que a gente se levantasse, depois de muito rolar debaixo da coberta, tínhamos aversão ao Sol, dificilmente colocávamos nossa cara para fora de casa. A rua não tinha movimento, dificilmente passava um transeunte, nem carro, então as janelas da parte da frente não ofereciam nenhum atrativo, mas as laterais nos atraiam. Podíamos ver a rotina dos vizinhos escondidos atrás das cortinas. Sentíamos falta de um binóculo, mas isso era coisa de filme de espionagem que assistíamos na TV, e diga-se de passagem, televisão só entrava no ar depois das 17 horas. Tínhamos livros, que não eram poucos, mas sem hábito de leitura, gastávamos o tempo fazendo nada.

Tínhamos um cachorro e dois gatos. O cachorro ficava lá fora, acorrentado em sua casinha, sendo devorado pelos carrapatos e procurando lugar vago para defecar mais um pouco. Um dos gatos, o manso, passava a maior parte do tempo dentro de casa, onde compartilhava nossa coberta. Era afagado por todos, inclusive sendo alvo de disputas, que às vezes só a sabedoria de Salomão o salvava. Ele não saia do colo, ia para onde o levassem. Ele devorava os desavisados marimbondos que porventura entravam em casa e se debatiam nas vidraças das janelas laterais, onde nós nos debruçávamos para espionar a rotina alheia.

Nestas vidraças víamos o tempo passar em segurança. Eram tantas as recomendações que os intrusos dificilmente bateriam em nossa porta. Era para dizer que a mãe não estava, mas que não demoraria, que tinha ido bem ali pertinho e que se fosse necessário ligariam para a casa da vó, mas, pelo que me lembro, nunca apareceu uma viva alma, nem o carteiro, quem diria alguém querendo fazer alguma maldade com três indefesas criancinhas e um gato comedor de marimbondos. Desconfiava que a presença do Dragão, o cachorro amarrado e seu latido incomodado com a falta de espaços para defecar, intimidasse um malfeitor.

Guardo na lembrança a visão da fresta da janelinha basculante aberta mostrando um dia chuvoso, e ali bem na divisa do terreno, palanques de aroeira estendendo seis linhas de arame liso, separando um mato verde, e denso, no lote vago que nos separava de uma casa em construção e suas caixas para preenchimento de uma armação de concreto de uma futura, e promissora, residência da vizinha que naquele momento morava na casa de madeira com teto baixo. A moradora lavando roupas, mesmo naquele dia chuvoso, talvez iria estender na cobertura, que servia de garagem, a uma Belina.

A janela deve ter permanecido onde estava, mas nós a atravessamos em busca de novas paisagens. Não me lembro do destino do gato, nem dos marimbondos. A mãe saiu e pediu para não nos esquecermos das recomendações.

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