TEMER PELA PREVIDÊNCIA

TEMER PELA PREVIDÊNCIA
Aloízio de Oliveira
Ele andava atribulado com coisas das circunstâncias, e elas o tomavam o tempo todo, inclusive com extensão no horário do expediente. Devido a tamanha aplicação ao cargo que ocupava, receber compromissos não agendados fora do horário se tornou corriqueiro. Ele devia se esforçar ao máximo para manter-se na ativa, apesar dos seus 77 anos.
Por conta destas atribulações, negligenciou o aviso da necessidade do recadastramento dos aposentados, programados periodicamente. Sempre havia feito, mas as ocasiões eram outras, hoje ele estava à frente dos negócios e estes afazeres domésticos foram, por ele, postergados. Ouviu as chamadas, mas como o prazo ainda se estendia, deixou para depois, como bom representante da nação brasileira. Não deu outra, o desfalque foi de 33 mil mensais, que se estendeu pelos três meses sequentes e que, até que se resolvesse, ainda persistiria por mais uns sabe-se lá quantos meses, sem direito aos retroativos.
Se aposentara cedo, vinte anos antes do que a nova legislação determina. O cargo que ocupa momentaneamente, cuida de alterar as novas regras, desde que se respeitem os direitos adquiridos. Com esta bolada a mais pingando na conta, somado aos vencimentos, contabilizados, oriundos das atividades que ainda exerce, lhe proporcionava uma tranquilidade monetária invejável. Inclusive se utilizava como exemplo para outros trabalhadores se manterem na ativa, por pelo menos uns 140 anos.
A verdade é que o desfalque foi percebido e a única solução seria mexer com a papelada. Documento pessoal com foto, comprovante de residência, declaração da justiça eleitoral, certidão de reservista, número de conta bancária não conjunta e Abreugrafia. Com eles em mãos, compareceria pessoalmente a um posto de recadastramento e assim provaria que ainda estava vivo e que ainda dava um caldo. Poderia ter optado pela utilização dos préstimos dos assessores, sempre tão solícitos, mas decidiu ele mesmo proceder com os tramites e provar, ao contrário do que dizem as pesquisas, ele ainda estava vivo, apesar de não mais figuras na lista dos beneficiários.
Teria que fazer agendamento, via telefone, em um posto de atendimento ao segurado, que ficasse o mais próximo possível de seu domicílio. O 0800 custou um tempinho para atender, mas quando foi atendido, foi guiado por um menu de opções que ele teve que, por mais de uma vez, apertar o nove, para retornar ao menu inicial. Por fim, como achou que não se enquadrava em nenhuma das opções, o “para chefe de um dos poderes”, aguardou para falar com um dos atendentes, que depois de vinte e sete minutos e dezessete segundos ouvindo repetidamente que “sua ligação é muito importante, dentro de alguns instantes iremos atender-lhe”. Tempo cronometrado por ele mesmo. Depois da espera o atendente lhe desejou “boa tarde”.
Precisava de uma senha para atendimento para recadastramento de aposentado. Infelizmente a solicitação não poderia ser atendida. Ele teria que ligar novamente e apertar a opção três: “segurados incapacitados ou rejeitados nas outras opções”, e olha que as outras duas opções enquadravam “aposentados em atividades com remuneração inferior ao teto”, que ele achou melhor não arriscar. Se ligasse novamente seriam outros vinte e sete minutos e dezessete segundos de espera e escuta repetitiva de “sua ligação é muito importante..”, coisa que ele já sabia de cor e salteado e que por algumas vezes fez coro com a gravação e em algumas delas emendava um impublicável palavrão, adjetivando a genitora de quem havia o deixado naquela eterna espera. Impublicável mas adequado, diga-se de passagem, segundo o seu melhor juízo, considerando que até aquele momento a ligação não poderia estar sendo gravada, como em outras oportunidades.
Solicitou ao atendente se seria possível uma transferência a partir daquela ligação, “infelizmente senhor a engenharia instrumental do sistema não permite tal procedimento. O senhor terá que ligar novamente”. Se ele dissesse com quem estava falando, quem sabe a engenharia instrumental mudasse de ideia, poderia ocorrer uma agilidade no atendimento, quem sabe. “A senhor poderia tentar? Por favor” disse ele lembrando-se de uma das três palavras que podem abrir várias portas, as outras seriam “puxe” e “empurre”. “Sem chances senhor…?”, “Michel, seu criado e a seu dispor”, adiantou-se suplicante. “Então senhor Michel, quanto mais cedo o senhor ligar maiores são as chances de ser atendido. Nosso atendimento, ao contrário de outros servidores, termina bem antes das vinte e duas.” Fazer o que? Este é o preço pago pela sua negligencia. Se tivesse confiado mais na simplicidade das coisas, tudo estaria resolvido e os trinta e três paus continuariam fazendo parte da sua soma de dividendos. Ele pensou, melindrado, que se demorasse mais algum tempo alguém poderia resolver sem mais nem menos, rever o seu benefício e sabendo que ainda estava na ativa acionam o corte deste.
O que faria ele sem os trinta e três paus surrupiados pelo corte na aposentadoria, por ele não ter se recadastrado? Fumar já não fumava mais, esta seria a melhor desculpa para um gasto extra. Outras atividades o erário se disponibilizava a pagar-lhe, o que lhe era de direito e disso ele não abriria mão. Sem falar que os surrupiados poderiam ser usados como uma fonte legal para declaração no Imposto de Renda.
Passados os vinte e sete minutos e dezessete segundos, em uma nova ligação, eis que a chamada se completa. Se apresentando como Roberto, perguntava com quem falava e na sequencia emendava “em que poderia ajudar?” Que agendasse um horário no posto de atendimento mais próximo do CEP 70150-000. Com toda solicitude, após alguns segundos ouvindo aquele barulho de um teclado sendo digitado, Roberto lhe informou que a próxima data vaga seria para 5 de fevereiro, segunda-feira, as nove horas, e que sua senha, que foi solicitado anotação, seria PSDB2018(Pessoa Sem Dependência Básica). Que beleza, segunda-feira, agora! Era só se encaminhar até lá, responder ao questionário do atendente e pronto, estaria provada a sua existência, antes teria que encontrar sua última Abreugrafia. Como bom procurador que era, inclusive se aposentou no cargo, solicitou ao atendente que confirmasse os dados por ele anotados. PSDB2018, cinco do dois de 20, nove horas, repetiu o atendente. Mas que absurdo, daqui a dois anos? Até lá só Deus sabe. E seus vencimentos como ficariam? Diante do exposto não teve dúvida, lançou mão da famosa carteirada. Perguntou se fazia ideia de com quem estava falando? Pois que ficasse sabendo que era com Michel Miguel Elias Temer Lula, o excelentíssimo senhor Michel, e ele que lhe arrumasse uma data mais próxima. O atendente, diante do exposto, pensou em se apresentar e dizer seu nome e sobrenome: Roberto Carlos Vasco Provença do Amaranto Carneiro de Mendonca, o “Roberto Carlos”, mas preferiu o anonimato.
Em se tratando de quem quer que fosse, depois de novamente digitar algumas teclas, Roberto Carlos cantarolou conferindo os dados e informou que a data vaga mais próxima para se apresenta a uma repartição da previdência, de posse dos documentos solicitados, provar que ainda estava vivo e continuar recebendo a merreca dos trinta e três paus seria dia três de outubro, se lhe interessasse geraria outra senha. Como disse que poderia, pediu que anotasse a nova senha que passou a ser SFTJBS18. Roberto Carlos também frisou que na data “tudo vai ser diferente”, devido as novas regras da previdência, dependendo dos resultados do Congresso, onde “Graças a Deus” tudo estava no seu lugar. Pediu também que aguardasse na linha para participar da pesquisa de satisfação do beneficiário. Após surgir uma gravação informando sobre a breve duração da pesquisa, lhe perguntaram que “Em se tratando do atendimento prestado pela previdência qual seria o grau de satisfação numa escala entre 13 e 15, sendo treze insatisfeito e quinze muito satisfeiro.”
Como não logrou êxito nesta tentativa de se recadastrar o mais rápido possível e resolver o furo que a falta dos trinta e três paus estavam provocando em suas finanças, tratou logo de chamar a assessoria para uma missãozinha discreta. Sabia que um deles possuía um contato no ministério e que poderia adiantar os tramites do recadastramento inclusive provar que estava vivo sem ter que se dirigir a um posto. O assessor possuía sim um contato e que poderia resolver a situação em “dois palitos”. Já teria tido um contato prévio com ele, sobre a terrível situação sofrível em que se encontra o chefe, com aquele desfalque monetário. O contato lhe havia dito que ele mesmo não resolveria o problema, mas conhecia alguém que conhecia alguém que poderia. Bastava alguns telefonemas, umas visitas fora de hora e um tempinho, que para ele estava bem escasso ultimamente, mas que poderia juntar esforços e dependendo da contrapartida, tudo estaria resolvido conforme o pedido, inclusive no tocante a discrição, coisa que os contatos presavam a todo custo.
A contrapartida não tinha ficado bem explicita, mas na contabilidade iriam constar a gasolina dos deslocamentos, as chamadas para outras operadoras e as horas extras, tudo convertido em moeda corrente e em espécie, mas nada que não coubesse em uma mala, entregue discretamente em um local insuspeito a um certo enviado confiável. Seria assim ou esperaria o três de outubro. “Três de outubro está ai”, dizia ele despreocupadamente depois de saber o valor da contrapartida. Era inacreditável, as pessoas colocarem valor, monetário, em tudo, nem consideravam quem quer que fosse. Se desistisse da artimanha em três de outubro estaria ele, de senha na mão, sentado em uma daquelas cadeiras azuis da previdência, portando a pasta plástica fume com aba e elástico tamanho A4, torcendo pelos breves atendimentos que antecederiam a sua vez.
Seria reconhecido, mas diria que se tratava de alguma coincidência, como por diversas vezes já ocorrera, e quando chegasse a sua hora marcada, após a conferência dos dados, o servidor, devidamente identificado com aquele cordão azul em volta do pescoço, o olharia com espanto e incrédulo pronunciaria: “Vossa excelência?” Apesar da tentativa frustrada da discrição, até o segurança terceirizado mudaria de postura. O condicionamento do ar entraria em funcionamento no modo freezer, o café e chá servido como forma de cortesia, seriam anunciados pela, também terceirizada, moça do café com um sonoro “saiu cafezinho e para quem gosta tem rosquinha Mabel também, hein!”. O atendimento a Vossa excelência passaria a ser feito na sala do gerente da unidade, pois não era sempre que um figurão destes aparecia por lá. Diriam que nem precisaria daquela trabalheira toda, que bastaria só um telefonema e tudo estaria resolvido, ainda mais que o Vossa excelência era uma pessoa bastante atribulada nos seus afazeres da vida pública e não seria justo ainda ter que incomodar com aquelas pequenas coisas domésticas.

Bem sabia, o Vossa Excelência, o preço daquela disponibilidade. Até três de outubro teria tempo suficiente para se recadastrar e voltar a ser beneficiário. Até lá teria que viver nesse perrengue que tornou-se sua vida pelo corte no benefício. Sobreviveria de um recurso aqui outro acolá, pois como diz o ditado: “Mais vale amigo solto na praça que dinheiro no caixa”.

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