UM PEDAÇO A MAIS

Acho que desde que me entendo por gente, tenho lembranças marcantes da minha infância. Eu me lembro da escola, do campinho para jogar bola, das pandorgas e dos passeios ao centro da cidade. Lembro-me também da Missa dominical, na capela do Colégio Salesiano, e os ecos, misturados do sermão do padre, com o ronco dos motores dos carros acelerados, com o barulho dos gritos e da correria no lado de fora da igreja, pelas crianças que podiam sair enquanto a cerimônia acontecia. Lugares enraizados na memória, compartilhados com amigos e vínculos parentais.

Morávamos próximos uns dos outros, a avó, os tios, as tias e os primos. Em minha casa sempre havia alguém em visita, lembro-me das assadeiras com bolos, do chá de capim cidreira e o pão velho fatiado transformado em torradas. Em dias festivos, um sabor se sobressai nas minhas memórias, o da pizza de sardinha com rodelas de tomate frescos, com semente e pele, e fatias de queijo caipira derretidos, dispostos em uma forma retangular, de generosa espessura, contrariando a tudo o que se apregoa hoje, ou seja, a pizza fina, redonda e cortada em oito pedados simétricos. Me pergunto: onde embarquei nesta viagem ao passado? Respondo: em um coquetel de confraternização, no refeitório da instituição onde, há quase trinta anos, sou professor.

A mordida naquela fatia da pizza ativou, no paladar, a longínqua memória afetiva. Estaria eu me teletransportando no tempo para a varanda da casa de minha tia Adélia, em algum momento de minha tenra idade , pois era o dia da festa de seu aniversário (cinco de agosto) e ela nunca deixou faltar aquela iguaria em suas comemorações. Está gostando? Coma mais! Me dizia ela e eu mais que depressa me servia de mais um pedaço da encantadora e prazerosa pizza de sardinha.

Voltando ao tempo atual, a dose de Dopamina se renova em outra mordida, incompletada pela Groselha não tida. Me perguntei novamente: quem mais teria a preferência pelo anacrônico sabor? Haveria outros convidados com as mesmas sensações prazerosas, como as de minhas memórias afetivas? Tiveram a clara noção da sensação deleitante proporcionada pelo deguste de tão preterido sabor?

Fiquei sabendo depois que a cobertura fora uma solicitação de alguém em cargo de chefia, de alguém que na simplicidade do ato talvez tivesse a intensão de compartilhar com os nostálgicos convivas, provocando emoções adormecidas, que em nome do fazer diário, na instituição, comprimiu as intenções de demonstrar afetos.

Aquela mordida fatiou para facilitar a deglutição das barreiras que impediam a explosão de sentimentos. Uma pizza de sardinha com rodela de tomates frescos com sementes e fatias derretidas de queijo caipira foi a receita usada para provocar aquela sensação adormecida, um sinal de que, apesar da dureza do trabalho, a memória se nutri e temos sempre algo escondido que podemos aflorar em nossas confraternizações.

Acho que há trinta anos me oferecem pedaços de pizza, mas não as de sardinha com rodelas de tomate fresco com sementes e fatias derretidas de queijo caipira. Tenho privado meu paladar de coisas simples, mas que, surpreendentemente, encontrei naquela confraternização a necessidade de ser trivial. Aguardarei um outro tempo para me lembrar de quão prazeroso foi a convivência por aqui e de ter saboreado outro pedaço de pizza de sardinha.

“CMCG 30 anos – 2023”

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